Descartes já dizia que o bom senso "é a coisa do mundo melhor partilhada”, e que todos possuem a sua cota de racionalidade para melhor compreender. No entanto, dá muito trabalho abandonar as formas não racionais de enxergar as coisas, exigindo tempo, experiência e esforço. Ou seja, não se pode esperar que isso ocorra magicamente.
Kant, um cartesiano de carteirinha, pelo menos até
aquele escocês aparecer na sua vida, destacava que a busca pela autonomia
intelectual, consolidada no que ele chamou de “maioridade”, era muito difícil
de se alcançar sozinho, pois o medo, a preguiça e a comodidade exercem um poder
muito grande sobre a nossa vontade, determinando, na maior parte das vezes, a
famosa “área de conforto”, em torno da qual balizamos nossa existência e nossas
decisões. “Ousa pensar”, exasperava-se o filósofo alemão, testemunhando o
estrago causado pelas superstições, pela manipulação das vontades pueris, pelos
preconceitos que ameaçavam existências. No entanto, sem um ambiente para que
essa racionalidade possa prosperar, retroalimentar-se e dividir suas
conquistas, seremos como os cegos do livro do Saramago, aprisionando-nos, com
nossas próprias mãos, ao fundo da caverna.
Foram os franceses quem implementaram a ideia de
uma prática coletiva da Razão, transformando a Ciência em uma atividade
estratégica para o desenvolvimento da sociedade e o fortalecimento do Estado.
Os estudiosos não precisariam mais contar apenas com o mecenato dos ricos e dos
nobres, como aconteceu no Brasil com D. Pedro II, conhecido por doar bolsas
para artistas e ganhar fama de filantropo enquanto o país patinava na
insignificância da educação pública em meio a uma escravidão anacrônica que se
estendeu até o penúltimo ano de seu reinado. Surgem na França, ainda em 1794, a
Escola Politécnica, para formar engenheiros, e a Escola Normal, para formar
professores. É fato que esse impulso acabou tolhido pelas idas e vindas do
reacionarismo, mas o bem já estava feito: a contemporaneidade implicaria a
Educação Pública como instituição basilar na formação e expansão da
racionalidade e no desenvolvimento da ideia de um conhecimento “cívico”,
voltado para o bem-estar da sociedade. Hoje consubstanciadas nas universidades
públicas, esse espaço onde se “ousa pensar” e amadurecer as racionalidades,
esse bastião contra os retrocessos medievais e contra o assalto às conquistas
da modernidade. Portanto, um pilar sem o qual qualquer projeto de Nação Moderna
e aspirante ao futuro tende a desmoronar.
É evidente que a Ciência, que trouxe avanços
inegáveis para a humanidade, principalmente no campo da saúde, da produção de
alimentos, na estrutura das cidades, no conforto e bem- estar das pessoas,
também proporcionou violência em escala inaudita. Principalmente porque a lição
de Kant foi esquecida, a do uso da Razão para delimitar o campo da Ética, por
meio de seu imperativo categórico: faça apenas o que puder ser universal.
Máxima que, até hoje, é de grande utilidade, quando, por exemplo, você resolve
colocar na sua página da internet um fato sem verificação, apenas porque agrada
ao seu modo de ver o mundo. Imagina se todos pudessem fazer a mesma coisa?
Acabaríamos com as instituições com as quais fizemos um pacto de confiança para
manter e expandir o modelo que define a própria contemporaneidade: saúde
pública, universidades, imprensa, divisão dos poderes, ciência. Mergulharíamos
no caldeirão do preconceito e da superstição, onde o que vale é o que se
acredita, sem questionamento. E a falta de questionamento, de problematização,
é o veneno da Razão.
Os caminhos que temos diante de nós são muito
claros: apostar no que construímos de mais confiável ou entregarmo-nos aos
desvarios das certezas da opinião. Como diria Descartes: afundarmos na areia
movediça ou fincarmos nossa bandeira sobre rocha sólida? A resposta não é uma
mera escolha individual, mas um compromisso público: seremos uma Nação do Bem
Comum ou um campo de batalha devastado.
Sapere Aude !
Daniel Medeiros - doutor em
Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros
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