Imagem de simulação do gelo XVIII. Os íons de oxigênio, em vermelho, ocupam uma rede cristalina regular enquanto os prótons, em branco, fluem no meio (imagem: Maurice de Koning e Filipe Matusalem)
O gelo comum – esse que é produzido nas
geladeiras domésticas e conhecido cientificamente pelo nome de gelo Ih – não é
a única fase cristalina da água. Há mais de 20 diferentes fases possíveis. Uma
delas, chamada de “gelo superiônico” ou “gelo XVIII”, apresenta especial
interesse. Entre outros motivos, pelo fato de compor grande parte do estofo dos
planetas Netuno e Urano, também conhecidos como “gigantes de gelo”.
Na fase cristalina superiônica, a água
perde sua identidade molecular (H2O); os íons negativos de oxigênio (O2-)
dispõem-se em uma rede cristalina extensa; e os prótons, que constituem os íons
positivos de hidrogênio (H+), formam um fluido que circula pela rede.
“A situação é análoga à de um metal
condutor, como o cobre, com a grande diferença de que, no metal, são os íons
positivos que formam a rede cristalina, enquanto os elétrons, portadores da
carga elétrica negativa, ficam relativamente soltos, circulando através da
rede”, diz o pesquisador Maurice de Koning,
professor titular do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual
de Campinas (IFGW-Unicamp).
De Koning coordenou o estudo que
resultou no artigo Plastic Deformation of Superionic Water Ices,
publicado este mês como destaque de capa do
periódico Proceedings of the National Academy of Sciences of the United
States of America (PNAS).
Como explica o pesquisador, o gelo
superiônico se forma sob temperaturas extremamente elevadas, no patamar de 5
mil kelvins (4,7 mil °C), e pressões altíssimas, da ordem de 340 gigapascais.
Esse valor é mais de 3,3 milhões de vezes maior do que o da pressão atmosférica
padrão da Terra. Por isso, é impossível ter gelo superiônico estável no
ambiente terrestre.
Em Netuno e Urano, porém, a pressão
resultante dos enormes campos gravitacionais desses planetas gigantes
possibilita a existência de grandes quantidades de gelo XVIII nas camadas
internas mais próximas dos respectivos núcleos. Medidas sismográficas confirmam
que isso realmente acontece.
“A eletricidade conduzida pelos prótons
através das redes cristalinas de oxigênios está intimamente ligada à questão de
por que os eixos dos campos magnéticos desses planetas não coincidem com seus
eixos de rotação. Eles se apresentam, de fato, bastante deslocados”, afirma De
Koning.
Medidas feitas pela sonda espacial
Voyager 2, que se aproximou desses planetas distantes em sua viagem para os
confins do Sistema Solar e além, mostram que os eixos dos campos magnéticos de
Netuno e Urano formam ângulos de 47 graus e de 59 graus com os respectivos
eixos de rotação.
Experimentos e simulações
Na Terra, um experimento reportado na revista Nature em
2019 conseguiu produzir uma minúscula quantidade de gelo XVIII que se manteve
por um nanossegundo, isto é, um bilionésimo de segundo, antes de se desestruturar.
Isso foi conseguido por meio de ondas de choque criadas por laser e lançadas
sobre uma amostra de água.
Conforme descreveram os autores do
experimento, seis feixes de laser de alta potência foram disparados em uma
sequência temporal precisa para comprimir, por meio de ondas de choque, uma
fina camada de água encapsulada entre duas superfícies de diamante. As ondas de
choque reverberaram entre os dois diamantes rígidos, proporcionando uma
compressão homogênea da água que resultou, por um intervalo de tempo diminuto,
na fase cristalina superiônica.
“No estudo realizado agora, não fizemos
um experimento físico real, mas usamos simulação computacional para investigar
as propriedades mecânicas do gelo XVIII e descobrir como suas deformações
influenciam os comportamentos observados nos planetas Netuno e Urano”, relata
De Koning.
O pesquisador conta que o estudo se
valeu da Teoria do Funcional da Densidade (Density Functional Theory ou
DFT), um método derivado da mecânica quântica e usado em física dos sólidos
para resolver estruturas cristalinas complexas. “Investigamos, primeiramente, o
comportamento mecânico de uma fase sem defeitos, que não existe no mundo real.
Depois, acrescentamos defeitos para saber que tipos de deformações
macroscópicas resultam disso”, explica.
Quando se fala sobre defeitos em
cristais, a expressão geralmente se refere a defeitos pontuais, caracterizados
pela vacância de íons ou pela intrusão de íons de outros materiais na rede
cristalina. Porém, não é disso que se trata aqui. O defeito mencionado por De
Koning não é pontual, mas linear. É chamado de “discordância” e ocorre quando
uma fase do cristal desliza sobre outra fase. O resultado é parecido com o que
ocorre quando se empurra um tapete sobre o chão no sentido longitudinal,
produzindo uma ondulação transversal no tapete.
“Em física de cristais, a discordância
foi postulada em 1934. Mas só foi observada experimentalmente pela primeira vez
em 1956. É um defeito que explica um grande número de fenômenos. Costumamos
dizer que ele está para a metalurgia assim como o DNA está para a genética”,
sublinha o pesquisador.
No caso do gelo superiônico, a soma de
discordâncias produz uma deformação macroscópica bastante conhecida por
mineralogistas, metalurgistas e engenheiros: o cisalhamento. “Em nosso estudo,
calculamos, entre outras coisas, o quanto é preciso forçar o cristal para ele
se romper por meio de cisalhamento”, destaca De Koning.
Para isso, o pesquisador e seus colegas
precisaram considerar uma célula bastante extensa do material, com cerca de 80
mil moléculas. Os cálculos exigiram técnicas computacionais extremamente
pesadas e sofisticadas, com o emprego de rede neural e aprendizado de máquina (machine
learning), e a composição de várias configurações baseadas em cálculos DFT.
“Este foi um aspecto bastante
interessante de nosso estudo, a integração de conhecimentos de diversas áreas:
metalurgia, planetologia, mecânica quântica e computação de alto desempenho”,
conclui De Koning.
O trabalho recebeu apoio da FAPESP por
meio de Bolsa de Pós-Doutorado concedida
ao primeiro autor, Filipe Matusalém de Souza,
sob a supervisão de De Koning; de um Projeto Temático coordenado
pelo pesquisador da Unicamp Alex Antonelli; e do Centro de Engenharia e Ciências
Computacionais (CCES), financiado no
âmbito do programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs).
O artigo Plastic Deformation of
Superionic Water Ices pode ser acessado em: www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.2203397119.
https://agencia.fapesp.br/gelo-exotico-contribui-para-o-entendimento-das-anomalias-magneticas-de-netuno-e-urano/40025/
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