O que significa luto
O luto é um conjunto de reações humanas relacionadas a uma morte
simbólica ou real que causa impacto significativo na vida de alguém. Cada um se
enluta à sua maneira e todos que enfrentam a dor do luto vivem cada um desses
processos de maneira singular.
Saiba mais neste artigo escrito pela psicóloga e psicopedagoga, Karina
Okajima Fukumitsu.
Luto Coletivo
O luto coletivo é outro conceito importante e que vem sendo
observado nos momentos atuais, em razão do aumento no número de vítimas da
Covid-19, só no Brasil, ultrapassamos o número de 300 mil mortes, até o
momento. Não é por acaso que observamos um aumento expressivo do sofrimento
existencial. Neste artigo, falaremos sobre o processo de luto, as principais
dificuldades e maneiras para preservar sua saúde existencial. Acompanhe e
entenda!
Em meu livro "Suicídio
e luto: histórias de filhos sobreviventes” (Lobo
Editora, 2020) discorro sobre um novo paradigma tanto para a compreensão quanto
para a intervenção do processo de luto, o modelo de processo dual do luto ou
Dual Process Model of Grief, DPM (Stroebe; Schut, 1999, tradução nossa),
proposto por Margaret Stroebe, por seu marido Wolfgang Stroebe e pelo
assistente Henk Schut, apresentado em 1994, em uma conferência na Grã-Bretanha,
e com a primeira publicação em 1999, por meio do artigo “The Dual Process Model
of Coping with Bereavement: Rationale and Description”.
O modelo, que coloca em questão as fases do processo de luto descritas
em estudos anteriores, traz reflexões acerca do redimensionamento dos papéis e
tarefas sociais e considera o luto um processo que envolve a constante
oscilação entre dois estressores ambivalentes – a “orientação para perda” e a
“orientação para a restauração”. Dessa maneira, oferece possibilidades para a
compreensão do luto como um processo dinâmico e regulador de enfrentamento e
conciliação com novos papéis (Parkes, 1998; Cândido, 2011). Além de lidar com a
morte da pessoa, o enlutado se vê diante do impacto da ausência e, por isso,
situações que se referem à elaboração da perda de per si e o imenso desejo de
restaurar a vinculação com o morto serão vivenciados na “orientação para a
perda”. Posteriormente, a busca da restauração da vida começa a emergir. Nesse
sentido, o redimensionamento e a descoberta de papéis, a busca de reorganização
prevalecem. É importante salientar que a oscilação entre “voltar-se para a
perda” e “voltar-se para a restauração” permite que o enlutado encontre
significados e que possa, dialeticamente, compreender seu processo de luto
(Fukumitsu, 2020, p. 51).
Na pandemia,
temos notado um número crescente de pessoas afetadas.
Nesse caso, não só quem teve de passar pela experiência da morte de seus
familiares e amigos, mas também pessoas que apresentam dificuldade para lidar
com esse momento tão difícil. Estamos em crise e, como supramencionado,
reagimos de maneiras diferentes. Maya Angelou tem uma frase que acredito ser
pungente para este momento de nossas vidas: “Você não pode controlar todos os
eventos que acontecem com você, mas você pode decidir a não ser reduzido por
estes eventos” (You may not control all the events that happen to you, but you
can decide not to be reduced by them).
Não podemos nos autorizar a sucumbir nesta crise pandêmica e o processo de luto
é a possibilidade de respondermos a toda situação que vai na contramão de
nossas expectativas e desejos.
Elizabeth Kübler-Ross, uma das autoras que faz parte do acervo de minhas
diretrizes nos estudos sobre luto, foi uma profissional que se dedicava ao
acompanhamento de pacientes na proximidade da morte. Kübler- Ross (1997) propõe
fases do lidar com o luto: choque, negação, revolta e raiva, luto e dor,
barganha com Deus, tristeza, aceitação (p.161). Mas, como percebo o luto como
processo de crise existencial, explicarei a compreensão sobre este processo.
No luto não usamos maquiagem
“No luto não usamos maquiagem” -, é a frase recorrente que
menciono em meus cursos. Digo isso, pois acredito que o luto é o momento mais
puro que a pessoa pode se apresentar. A dor do luto não nos permite mascarar o
que sentimos.
Cada um enfrentará sua travessia de sofrimento. Para tanto, é preciso
considerar alguns sentimentos que fazem com que a gente sinta que está no
primeiro carinho de uma montanha russa.
Em virtude de a morte de alguém que amamos trazer impactos que não temos
dimensão de suas consequências, não é raro ouvir que ao receberem a notícia de
morte, alguns relatam o momento do choque. Nesta fase, o enlutado vive um
período de estado de ameaça constante no qual existe uma confusão acerca da
realidade e descrença de que aquilo está realmente acontecendo. Podemos dizer
que, nesse momento, ocorre uma sensação semelhante a uma anestesia, uma
proteção do próprio organismo para ajudar o enlutado a dar os primeiros passos
nessa nova realidade. Nesse sentido, também não devemos julgar quem nega, pois
“o sentido pertence ao ‘sentidor’, aquele que sente a dor” (Fukumitsu, 2014, p.
59).
Lidar com situações que nos fazem sentir impotentes provoca raiva. Nessa
direção, é comum que pessoas em processo de luto se dê conta de sua indignação
em relação ao que foi impactado. O organismo produz uma substância chamada
novocaína, que é responsável por eliminar aquele amortecimento temporário
inicial. Desaparecendo a sensação de anestesia, a pessoa começa a ter de lidar
com a sensação de agonia física e mental. Dessa forma, a fadiga e dificuldade
de executar tarefas simples são expressivas neste momento. Sendo assim, a
pessoa em luto tenta resguardar as poucas energias que lhe parecem restar.
Quando a pessoa não consegue mais executar as tarefas comuns do seu dia a dia,
se sente prostrada e sem motivação para continuar, é um sinal de alerta para
buscar ajuda profissional.
Quais são as principais dificuldades
no processo de luto?
Certo dia, ouvi Teresa Vera Gouvêa dizendo que atualmente
não se fala mais sobre “aceitação do luto”, mas sim, em “adaptação à situação
adversa”.
No caso específico da pandemia que estamos vivendo, a sensação de incerteza e
incapacidade toma conta de muitas pessoas. Uma mudança brusca na realidade
conhecida pode ser relacionada com o luto, pois houve a perda do mundo
presumido. Isso quer dizer que o luto se aplica não só ao falecimento de um
ente querido, mas também acontece em situações de mortes simbólicas, tais como,
a mudança de estilo de vida como a que estamos vivenciando com a pandemia.
Aceitar o que aconteceu não significa concordar com o evento. A pessoa enlutada
busca forças para lhe dar impulso para a nova configuração da vida que se
instala. A mudança nas atitudes é lenta e gradual, e a reapropriação de
atitudes e a restauração de nossa existência vêm aos poucos.
A passagem da transformação da dor em amor ou processo de extrair flor de pedra
se inicia.
Extrair flor de pedra é, portanto, a possibilidade de a pessoa exercitar
sua capacidade de transcendência. Ou seja, quando a pessoa extrai o
conhecimento que não aprendeu com ninguém e apresenta uma ação criativa para
oferecer algo generoso e amoroso para a humanidade, por exemplo, quando uma
pessoa oferece cuidados que nunca recebeu aos outros, encontrando assim, um
sentido para sua vida (Fukumitsu, 2019, p. 189).
Nesse sentido, extrair flor de pedra significa perdoar a si mesmo por ter de
lidar com a situação e aceitar que a perda de fato aconteceu representa esforço
hercúleo e que nos auxilia a resgatar os bons momentos que a morte não é capaz
de furtar.
O luto envolve um longo caminho a ser trilhado e a passagem por vários momentos
áridos. Não existe um prazo para superar o luto, tampouco uma fórmula para se
viver a experiência do luto, porque isso varia significativamente de uma pessoa
para outra. A dor une e muitas vezes, buscar um profissional da área de saúde
mental pode ajudar.
Parkes (1998, p.22-3) ensina que a dor do luto é tanto parte da vida quanto a
alegria de viver; é, talvez, o preço que pagamos pelo amor, o preço do
compromisso. Ignorar este fato ou fingir que não é bem assim é cegar-se
emocionalmente, de maneira a ficar despreparado para as perdas que irão
inevitavelmente ocorrer em nossa vida, e também para ajudar os outros a
enfrentar suas próprias perdas.
O processo de luto faz com que a pessoa perceba que existem enfrentamentos
diversos e que novas possibilidades devem ser estabelecidas para que a vida
continue. Nunca somos os mesmos após uma perda, seja ela real ou simbólica. A
vida é arte que leva tempo para continuar a viver, construindo novos laços e
guardando na memória os bons momentos e a experiência que a pessoa falecida
proporcionou. Repito. Nenhuma morte deve furtar as histórias e as experiências
que tivemos com quem partiu.
Se você está passando por um processo de luto ou conhece alguém nessa situação,
busque orientação profissional.
Psicóloga, psicopedagoga e Pós-doutorado e doutorado em
Psicologia pelo Instituto de Psicologia (USP). Mestre em Psicologia Clínica
pela Michigan School of Professional Psychology. Coordenadora da Pós-graduação
em “Suicidologia: Prevenção e Posvenção, Processos Autodestrutivos e Luto” da
Universidade Municipal São Caetano do Sul. Coordenadora, em parceria, da
Pós-graduação “Morte e psicologia: promoção da saúde e clínica ampliada”;
coordenadora, em parceria, da Pós-graduação “Abordagem Clínica e Institucional
em Gestalt-terapia” da Universidade Cruzeiro do Sul. Membro-efetivo do
Departamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes Sapientiae e co-editora da
Revista de Gestalt do Departamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes
Sapientiae. Podcaster “Se tem vida, tem jeito”. Consultora ad hoc do hospital
Santa Mônica
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Referências bibliográficas
- Fukumitsu, K.O. Suicídio e Luto: história de filhos sobreviventes. 2 ed. São Paulo: Lobo, Editora,
2020.
- A vida não é do jeito que a gente quer. 2. ed. – São Paulo : Lobo, 2019.
- Xiquexique nasce em telhado:
reflexões sobre diferença, indiferença e indignação. In: Revista de
Gestalt, v. 17, São Paulo, 2012c, pp. 69-71.
- Kübler-Ross, E. The wheel of life: a memoir of living and dying. New York: A Touchstone Book, 1997.
- Parkes, C. M. Luto. São Paulo,
Summus Editorai, 1998.
- Stroebe, M.; Schut, H.
The dual process model of bereavement: rationale and description. Death
studies, Filadelfia, v. 23, p. 197-224, 1999.
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