Sou mãe de uma criança de 4 anos, atuei como docente e aluna de ensino superior durante a pandemia. Poderia falar dos desafios em preparar e ministrar aulas remotas, do desânimo que é caprichar na aula e aparecer apenas um aluno, da dificuldade como aluna em manter a atenção na tela por 4 horas seguidas ouvindo o professor falar, da frustração em aprender um novo assunto prático sem fazer uso de um laboratório para ver o experimento. Mas vou falar sobre a tristeza em ver uma criança de 4 anos longe da escola.
Minha filha adora escola, vai desde os 4 meses.
Cerca-se de amigos, interage com todas as professoras e, antes da pandemia, mal
podia ver outra criança na rua que puxava conversa. De um dia para o outro,
isso foi tirado dela. Repentinamente, viu-se trancada em casa com o pai e a mãe
em teletrabalho, sem condições de dar a atenção integral a que ela estava
acostumada, passando a maior parte do dia em frente à TV. Sair na rua?
Tentávamos dar uma volta na quadra por dia, mas as pessoas que cruzavam conosco
nos olhavam com ódio e recriminação por estarmos com uma criança, até então a
grande transmissora do vírus, circulando na rua. Eu nunca falei a ela sobre
isso, nem que crianças estavam proibidas de entrar em estabelecimentos, apenas
que ela não podia frequentar panificadora, farmácia ou supermercado porque
autorizam somente uma pessoa por família.
Ela começou a perguntar quando voltava a escola.
“Não sei, quando acharem um remédio para curar o vírus”. “E quando vão achar o
remédio?” “Não sei, os cientistas estão pesquisando, isso demora”. Os adultos
demoraram tanto a resolver o problema, que em alguns dias ela achou a resposta:
“Queria ser adulta para achar o remédio que mata o vírus”. Ela regrediu na
autonomia da idade: apesar de desfraldada, começou a fazer xixi na cama; não
queria ir ao banheiro sozinha; não queria me perder de vista; se recusava a
fazer certas coisas que a lembravam da rotina da escola (afinal não estava na
escola); queria ajuda para comer. Tinha aulas online, ela tentava interagir e
se frustrava, acabava sentada no sofá com os bracinhos cruzados e a carinha
emburrada. Passou a evitar crianças estranhas na rua, até hoje não conversa
mais com as que encontra.
Contratei uma educadora que ela conhecia e adorava
para ficar meio período e passei a convidar um ou outro amigo para brincar de
vez em quando. Melhorou, mas não resolveu. Ela queria todos os amigos, todas as
educadoras da escola, queria brincar no pomar, na caixa de areia, na “sala
grande”, na sala da turma…
Em setembro, ensaiamos um retorno às atividades
extracurriculares, que foi vetado no primeiro dia em que ela foi para a escola.
Voltou a tristeza, ficava emburrada quando a educadora chegava, pois confirmava
que ela não iria para a escola. Em outubro, voltamos novamente meio período, pois
a escola é pequena e tinha no máximo dez crianças frequentando, em amplo espaço
livre. Nunca vi minha filha tão feliz, confesso que chorava de emoção cada vez
que a deixava no portão da escola.
Nesse momento, a comunidade científica pediátrica
era favorável ao retorno às aulas. Estudos demonstravam que as taxas de
transmissão eram baixíssimas e o contágio ocorria mais em casa que na escola.
Mas ainda havia um risco e, apesar disso, as perdas psicológicas e pedagógicas
eram muito maiores, em nossa avaliação. Como nossa prioridade era que ela fosse
à escola, também fizemos nossa parte em evitar circulação, saindo apenas para
coisas essenciais, assim como outros pais.
A escola fechou apenas Natal e Ano Novo, e foram
dias intermináveis para ela. Em janeiro, retornou na “colônia de férias”, e a
alegria continuou. Na segunda semana, dois irmãos ficaram alguns dias afastadas
das atividades com febre, falta de apetite e diarreia e foram confirmados com
Covid-19. O diagnóstico demorou a sair, pois os sintomas não eram “tipicamente”
de Covid-19 e o pediatra achou que fosse apenas uma virose. As crianças
chegaram a ir à escola um dia que estavam sem febre, mas assim que apresentaram
o sintoma a mãe foi chamada e as levou embora. A direção da escola mapeou quem
teve contato, que foi ao ar livre. Ficamos alguns dias em casa aguardando mais
sintomas e ninguém mais manifestou, nem adulto, nem criança. A escola adotou
como protocolo a apresentação de atestado de liberação para retorno quando a
criança apresentar febre.
Veio a grande onda (já nem sei o número da onda, de
tantas que temos no Brasil). As autoridades locais estavam aprovando em lei a
essencialidade da Educação, mas fecharam as escolas por decreto, junto com
tudo. Dei a notícia para ela no carro, a reação foi um grito desesperado de
“nãããããããããããããããããão!” e um choro sentido. Quando consegui parar o carro, fiz
questão de gravar o momento: dói assistir, mesmo sabendo que ela já tinha se
acalmado um pouco. Perguntei se tinha dormido na escola (fica de mal humor e chorosa
se não dorme), ela (geralmente calma e adorável) respondeu muito revoltada: “Eu
dormi! Você me fala que a escola vai fechar e não quer que eu chore???” Sim,
ela tinha toda razão em chorar, eu mesma estava me segurando.
Chamei novamente a educadora, um ou outro amigo de
vez em quando, e lá se foram mais 6 semanas de incerteza, todos os dias
respondendo à pergunta: “Quando vou para a escola?” “Não temos certeza, mas não
vai demorar”. “Está demorando muito, quero ver meus amigos, minhas professoras,
brincar no pomar, na sala da Sabrina (professora), escrever no meu livro
novo...” Finalmente, a notícia de que voltaria chegou. Só falei na noite de
domingo, pois ainda não acreditava naquilo. A felicidade dela era enorme, se
esforçou para dormir cedo para chegar logo a hora de ir para a escola. Na
madrugava, quando acordou para ir ao banheiro, me perguntou sonolenta: “é
amanhã que vou para a escola?”, mal podendo acreditar naquilo. Ao acordar, a
primeira pergunta foi: “hoje vou para a escola?”. Correu arrumar a mochila,
separar as máscaras e me apressar para sair logo. A felicidade estava de volta.
Não sei os efeitos psicopedagógicos da ausência de
escola sobre minha filha. Não estou preocupada com “conteúdo” que ela não tenha
aprendido, mas sim com sua saúde mental. Pelos relatos que vejo, há casos
piores de crianças com bruxismo, gagueira, timidez excessiva, dificuldade em
interagir com qualquer outra pessoa, baixa qualidade de sono, sono excessivo,
obesidade, miopia, depressão, medo ao perder adultos de vista, choro excessivo,
medo de sair de casa, entre outros sintomas cujos distúrbios eu não saberia
relacionar. Fico imaginando os efeitos sobre as crianças em condições
econômicas mais precárias, que são a maioria, as que os pais não têm a opção de
flexibilizar a jornada de trabalho para dar pelo menos um pouco de atenção a
elas, as que ficam na casa de qualquer pessoa sem formação e condições
adequadas, e as que estão sujeitas à violência doméstica.
No primeiro final de semana da retomada da bandeira
laranja, parques, praças e bares estavam lotados. Chegamos a passar em frente a
uma praça e um bar, e ela ficou revoltada ao ver as pessoas sem máscara. Ela
passa o dia todo de máscara, corre, fala e não reclama, nem mesmo da dermatite
causada pelo abafamento na pele. Ela já entendeu que esse comportamento
irresponsável pode fechar a escola em breve, e não concorda com as
irresponsabilidades dos adultos…
Leide Albergoni Bilinski -
economista, mãe da Cecília e professora de Economia na Universidade Positivo.
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