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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

QUESTÃO DE HONRA

Honos, jovem guerreiro romano, modelo de soldado, era deus. Honra, etimologicamente, vem dessa divindade. Durante muito tempo, traduzia a coragem militar, depois, incluiu-se a dignidade das pessoas que se haviam em alta conta. Coisa do mundo masculino. 

O atributo castrense tornou-se apanágio de fidalguia. Foi valor cultivado pela nobreza, um modo destacado de estar no mundo. Indivíduos com significado social relevante deviam ter honra e ser honrados. Morria-se para salvaguardar essas ideias, se necessário.

 

Sentir-se com honra é a dimensão subjetiva do valor, é a consideração de si próprio perante a Sociedade, é o ter honra, um ideal moral. O conceito público de uma pessoa é o seu aspecto objetivo, é o ser honrado, ter sua conduta reconhecida como valorosa (ocorre-me “fazer-se valer”, Adler).

 

Questões desse tema, entre nobres, deviam ser resolvidas em duelos, um combate ajustado, levado a termo em campo aberto, na presença de testemunhas, com armas iguais indicadas pelo afrontado, objetivando o desagravo de uma dignidade insultada.

 

Já “a burguesia preocupou-se menos com o conceito de honra, não o deixando, contudo, inteiramente marginalizado. Há outros campos em que a honra se faz qualificada. As constituições republicanas sul-americanas a prestigiam. A Carta brasileira em vigor expressa a sua preservação no inciso X do seu artigo 5º, assegurando indenização por dano contra a honra” (Cláudio Lembo, Conceito em Desuso, CEPES, 22jul19).

 

Nos termos da Constituição, item específico: Art. 5º, X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Item incidente: Art. 5º, V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.

 

De fato, o estado de direito burguês tirou a resolução das questões de honra do talante pessoal, prescrevendo formas legais de sua proteção e resolução de conflitos a ela atinentes. A resposta de um ofendido em sua dignidade foi trazida para outro campo: o da intermediação jurídica.

 

Lembo considera que se houve um tempo em que “‘pode-se perder tudo menos a honra’, lamentavelmente, nos tempos contemporâneos, a palavra honra e seu conteúdo moral caíram em aparente desuso”, não obstante seguir declarada como um valor fundamental.

 

Efetivamente, à sua defesa mais se tem prestado o inciso V do que o X do artigo 5º da Constituição, pois mais se procura o Judiciário para desagravar a imagem pública do que a dor subjetiva. O pedido de reparo por sofrimento moral é apêndice do de reparo à reputação, sobretudo em se tratando de pessoas com vida pública.

 

Assim, ainda que a calúnia e a difamação (afrontas objetivas) e a injúria (afronta à subjetividade), crimes previstos, respectivamente, nos Arts. 138, 139 e 140 do Código Penal, sejam tipos penais antigos, se um dia motivavam ações pessoais objetivando “lavar a honra” por justificativas subjetivas, hoje, objetivamente, motivam ações judiciais pedindo direito de resposta e indenização.

 

As questões injuriosas, as que causam danos especificamente subjetivos, advindos especialmente dos insultos produzidos pelas relações de ódio que proliferam nas redes sociais, no mais das vezes obtêm medidas satisfativas de parte a parte, com trocas recíprocas de dizeres ultrajantes.

 

O que se aparenta diferente – novidade requentada – é o esforço do machismo renitente em recuperar uma tese vencida, a legítima defesa da honra, como uma autorização legal, ou excludente de ilicitude, para matar mulheres.

 

O restabelecimento desse discurso extemporâneo, já não aceito pelos tribunais, tem âncora em valores ainda estabelecidos, não obstante acanhadamente exercitados, conforme se pode conferir pelo conceito fortemente sexista de honra, considerando o que seria o seu valor ético-social para o homem e social-subserviente para a mulher.

 

Sabe-se, os dicionários assentam as palavras conforme seus usos. Honra, no sentido de dignidade, é o “princípio que leva alguém a ter uma conduta proba, virtuosa, corajosa, e que lhe permite gozar de bom conceito junto à sociedade; consideração a uma pessoa que se distingue por seus dotes intelectuais, artísticos, morais” (Houaiss)

 

Com o mesmo significado, honra: “consideração e homenagem à virtude, ao talento, à coragem, às boas ações ou às qualidades de alguém; sentimento de dignidade própria que leva o indivíduo a procurar merecer e manter a consideração geral” (Aurélio). “Sentimento de glória e grandeza” (Michaelis)

 

Já, quando o verbete se aproxima do que, sobre honra, concerne à mulher, temos: “virtuosidade, castidade sexual da mulher (Houaiss). “Honestidade, pureza, castidade, virgindade” (Aurélio). “Pureza sexual feminina; castidade, virgindade” (Michaelis).

 

Seja: no relativo ao geral, que, no caso, quer dizer o masculino, honra advém da atitude altiva, de um ato de vontade elevada sobre o mundo e diz respeito à consideração provocada ou recebida.

 

Honra, pois, para o mundo, são os comportamentos superiores do homem; no tocante às mulheres, são os comportamentos para o homem. A honra masculina é o grande gesto; a honra feminina é o não agir, sobretudo, não agir sexualmente. A honra da mulher se realizaria na condescendência.

 

Pretensão exorbitante para o homem; condicionamento humilhante para a mulher. Apesar disso, ou por causa da remanescente incidência histórica disso, alguns homens estão em busca da legítima defesa da honra como excludente de ilicitude para a prática do feminicídio.

 

Ora, a falta de consideração pela honra alheia é sempre de ser refutada, contudo, argumentar defesa da honra para matar é, moralmente, um pretexto vexatório, e juridicamente é um argumento descabido.

Moralmente, deve-se lembrar que matar em nome da honra sempre foi atitude submetida a uma etiqueta: a exigida pelo duelo. Um duelo está longe de ser um assassinato, menos ainda de ser um assassinato penalmente qualificado. Juridicamente, as excludentes de ilicitude previstas têm estabelecidas em lei as condições de seu exercício.

 

Senão, veja-se, Código Penal: Exclusão de ilicitude. Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: II - em legítima defesa. Depois, Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

 

Sim, a honra é um direito, um direito a ser defendido. Nem a legislação, nem a tradição, contudo, autorizam a retomada brutalizada e covarde do costume duelar da nobreza para fazê-lo. Se alguém desonra alguém, no caso, se uma mulher desonra um homem (eu diria: liberta-se da repressão), a previsão constitucional de reparo está no caminho da lei.

 

É verdade que os acontecimentos relativos a tal valor são tomados por afetos fortes. Mas, Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal: I - a emoção ou a paixão. Quando muito, se de fato for aplicável, Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: III - ter o agente: a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral; c (...), ou sob influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima.

 

Ao cuidar do Homicídio Simples, o Código Penal, no seu Art. 121. Matar alguém, recupera tais atenuantes, considerando-as como Caso de diminuição de pena: § 1º - Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção [mas, sob estritas circunstâncias, a saber:], logo em seguida a injusta provocação da vítima (...).

 

Ora, as notícias que descrevem crimes contra mulheres não referem que por parte das vítimas tenha havido qualquer injusta provocação. Antes, pelo contrário, tais crimes são, no mais das vezes, praticados na sua forma qualificada: § 2º - Se o homicídio é cometido: I - (...) ou por motivo torpe; II - por motivo fútil; IV - (...) mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.

 

E nos termos do tipificado como Feminicídio: VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. § 2º-A - Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

 

E, prevendo o modus operandi de grande parte dos feminicidas, § 7º - A pena do feminicídio é aumentada (...) se o crime for praticado: III - na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; IV – em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas (...).

Eis-nos: ao tempo em que os noticiosos nos informam de homens que se recusam a obedecer a ordens judiciais de afastamento da mulher e de mortes violentas de mulheres diante de suas crianças, reivindica-se o direito de matar por defesa da honra.

 

Não há honra e nem se retomaram os já proibidos costumes da nobreza para a preservação da imagem própria ou alheia. Há crimes violentos movidos por motivo torpe ou fútil, praticados de surpresa por sujeitos que, armados de revólver, faca ou qualquer meio, atacam, sem nenhuma chance de a mulher se defender.

 

Nem a duelar alguns homens que se alegam honrados, mas não têm ideia do que seja honra, se propõe. Nada. São assassinos, tipificados como feminicidas. E matam alegando direitos, quando não respeitam o direito de uma mulher já não os querer; e matam alegando ciúmes, quando querem impor um doentio sentimento de posse. Tipos vencidos. Desonra da Brasil

 

 Léo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC.

Psicanalista e Jornalista.


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