Honos, jovem guerreiro romano, modelo de soldado, era deus. Honra, etimologicamente, vem dessa divindade. Durante muito tempo, traduzia a coragem militar, depois, incluiu-se a dignidade das pessoas que se haviam em alta conta. Coisa do mundo masculino.
O atributo
castrense tornou-se apanágio de fidalguia. Foi valor cultivado pela nobreza, um
modo destacado de estar no mundo. Indivíduos com significado social relevante
deviam ter honra e ser honrados. Morria-se para salvaguardar essas ideias, se
necessário.
Sentir-se
com honra é a dimensão subjetiva do valor, é a consideração de si próprio
perante a Sociedade, é o ter honra, um ideal moral. O conceito público de uma
pessoa é o seu aspecto objetivo, é o ser honrado, ter sua conduta reconhecida
como valorosa (ocorre-me “fazer-se valer”, Adler).
Questões
desse tema, entre nobres, deviam ser resolvidas em duelos, um combate ajustado,
levado a termo em campo aberto, na presença de testemunhas, com armas iguais
indicadas pelo afrontado, objetivando o desagravo de uma dignidade insultada.
Já “a
burguesia preocupou-se menos com o conceito de honra, não o deixando, contudo,
inteiramente marginalizado. Há outros campos em que a honra se faz qualificada.
As constituições republicanas sul-americanas a prestigiam. A Carta brasileira
em vigor expressa a sua preservação no inciso X do seu artigo 5º, assegurando
indenização por dano contra a honra” (Cláudio Lembo, Conceito em Desuso, CEPES,
22jul19).
Nos termos
da Constituição, item específico: Art. 5º, X - são invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Item incidente:
Art. 5º, V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além
da indenização por dano material, moral ou à imagem.
De fato, o
estado de direito burguês tirou a resolução das questões de honra do talante
pessoal, prescrevendo formas legais de sua proteção e resolução de conflitos a
ela atinentes. A resposta de um ofendido em sua dignidade foi trazida para
outro campo: o da intermediação jurídica.
Lembo
considera que se houve um tempo em que “‘pode-se perder tudo menos a honra’,
lamentavelmente, nos tempos contemporâneos, a palavra honra e seu conteúdo
moral caíram em aparente desuso”, não obstante seguir declarada como um valor
fundamental.
Efetivamente,
à sua defesa mais se tem prestado o inciso V do que o X do artigo 5º da Constituição,
pois mais se procura o Judiciário para desagravar a imagem pública do que a dor
subjetiva. O pedido de reparo por sofrimento moral é apêndice do de reparo
à reputação, sobretudo em se tratando de pessoas com vida pública.
Assim, ainda
que a calúnia e a difamação (afrontas objetivas) e a injúria (afronta à
subjetividade), crimes previstos, respectivamente, nos Arts. 138, 139 e 140 do
Código Penal, sejam tipos penais antigos, se um dia motivavam ações pessoais
objetivando “lavar a honra” por justificativas subjetivas, hoje, objetivamente,
motivam ações judiciais pedindo direito de resposta e indenização.
As questões
injuriosas, as que causam danos especificamente subjetivos, advindos
especialmente dos insultos produzidos pelas relações de ódio que proliferam nas
redes sociais, no mais das vezes obtêm medidas satisfativas de parte a parte,
com trocas recíprocas de dizeres ultrajantes.
O que se
aparenta diferente – novidade requentada – é o esforço do machismo renitente em
recuperar uma tese vencida, a legítima defesa da honra, como uma autorização
legal, ou excludente de ilicitude, para matar mulheres.
O
restabelecimento desse discurso extemporâneo, já não aceito pelos tribunais,
tem âncora em valores ainda estabelecidos, não obstante acanhadamente
exercitados, conforme se pode conferir pelo conceito fortemente sexista de
honra, considerando o que seria o seu valor ético-social para o homem e
social-subserviente para a mulher.
Sabe-se, os
dicionários assentam as palavras conforme seus usos. Honra, no sentido de
dignidade, é o “princípio que leva alguém a ter uma conduta proba, virtuosa,
corajosa, e que lhe permite gozar de bom conceito junto à sociedade;
consideração a uma pessoa que se distingue por seus dotes intelectuais,
artísticos, morais” (Houaiss)
Com o mesmo
significado, honra: “consideração e homenagem à virtude, ao talento, à coragem,
às boas ações ou às qualidades de alguém; sentimento de dignidade própria que
leva o indivíduo a procurar merecer e manter a consideração geral” (Aurélio).
“Sentimento de glória e grandeza” (Michaelis)
Já, quando o
verbete se aproxima do que, sobre honra, concerne à mulher, temos:
“virtuosidade, castidade sexual da mulher (Houaiss). “Honestidade, pureza, castidade,
virgindade” (Aurélio). “Pureza sexual feminina; castidade, virgindade”
(Michaelis).
Seja: no
relativo ao geral, que, no caso, quer dizer o masculino, honra advém da atitude
altiva, de um ato de vontade elevada sobre o mundo e diz respeito à consideração
provocada ou recebida.
Honra, pois,
para o mundo, são os comportamentos superiores do homem; no tocante às
mulheres, são os comportamentos para o homem. A honra masculina é o grande
gesto; a honra feminina é o não agir, sobretudo, não agir sexualmente. A honra
da mulher se realizaria na condescendência.
Pretensão
exorbitante para o homem; condicionamento humilhante para a mulher. Apesar
disso, ou por causa da remanescente incidência histórica disso, alguns homens
estão em busca da legítima defesa da honra como excludente de ilicitude para a
prática do feminicídio.
Ora, a falta de consideração pela honra alheia é
sempre de ser refutada, contudo, argumentar defesa da honra para matar é,
moralmente, um pretexto vexatório, e juridicamente é um argumento descabido.
Moralmente, deve-se lembrar que matar em nome da honra sempre foi atitude
submetida a uma etiqueta: a exigida pelo duelo. Um duelo está longe de ser um
assassinato, menos ainda de ser um assassinato penalmente qualificado.
Juridicamente, as excludentes de ilicitude previstas têm estabelecidas em lei
as condições de seu exercício.
Senão, veja-se, Código Penal: Exclusão de
ilicitude. Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: II - em
legítima defesa. Depois, Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando
moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou
iminente, a direito seu ou de outrem.
Sim, a honra é um direito, um direito a ser
defendido. Nem a legislação, nem a tradição, contudo, autorizam a retomada
brutalizada e covarde do costume duelar da nobreza para fazê-lo. Se alguém
desonra alguém, no caso, se uma mulher desonra um homem (eu diria: liberta-se
da repressão), a previsão constitucional de reparo está no caminho da lei.
É verdade que os acontecimentos relativos a
tal valor são tomados por afetos fortes. Mas, Art. 28 - Não excluem a
imputabilidade penal: I - a emoção ou a paixão. Quando muito, se de fato for
aplicável, Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: III - ter o
agente: a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral; c
(...), ou sob influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da
vítima.
Ao cuidar do Homicídio Simples, o Código
Penal, no seu Art. 121. Matar alguém, recupera tais atenuantes, considerando-as
como Caso de diminuição de pena: § 1º - Se o agente comete o crime impelido por
motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção
[mas, sob estritas circunstâncias, a saber:], logo em seguida a injusta provocação
da vítima (...).
Ora, as notícias que descrevem crimes contra
mulheres não referem que por parte das vítimas tenha havido qualquer injusta
provocação. Antes, pelo contrário, tais crimes são, no mais das vezes,
praticados na sua forma qualificada: § 2º - Se o homicídio é cometido: I -
(...) ou por motivo torpe; II - por motivo fútil; IV - (...) mediante
dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do
ofendido.
E nos termos do tipificado como Feminicídio:
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. § 2º-A -
Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime
envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à
condição de mulher.
E,
prevendo o modus operandi de grande parte dos feminicidas, § 7º - A pena do
feminicídio é aumentada (...) se o crime for praticado: III - na presença
física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; IV – em
descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas (...).
Eis-nos: ao tempo em que os noticiosos nos informam de homens que se
recusam a obedecer a ordens judiciais de afastamento da mulher e de mortes
violentas de mulheres diante de suas crianças, reivindica-se o direito de matar
por defesa da honra.
Não há honra e nem se retomaram os já
proibidos costumes da nobreza para a preservação da imagem própria ou alheia.
Há crimes violentos movidos por motivo torpe ou fútil, praticados de surpresa
por sujeitos que, armados de revólver, faca ou qualquer meio, atacam, sem
nenhuma chance de a mulher se defender.
Nem a duelar alguns homens que se alegam
honrados, mas não têm ideia do que seja honra, se propõe. Nada. São assassinos,
tipificados como feminicidas. E matam alegando direitos, quando não respeitam o
direito de uma mulher já não os querer; e matam alegando ciúmes, quando querem
impor um doentio sentimento de posse. Tipos vencidos. Desonra da Brasil
Doutor em
Direito pela UFSC.
Psicanalista e
Jornalista.
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