Fuja do pedestal como o diabo foge da cruz. Parece
meramente uma frase de efeito, mas essa associação contém uma lógica
profundamente impregnada de realidade. Se você já se deixou colocar em um
pedestal, sentiu na pele que estar em um lugar elevado do chão – ou estar em
uma cruz – é essencialmente a mesmíssima coisa. Tenho pensado muito nessa
questão em tempos de distanciamento social, de medo do novo Covid-19 e da
necessidade de lidar com a alteração de planos.
Aparentemente, estar em um pedestal pode parecer
ocupar um lugar de destaque; um lugar em que o nosso “ser especial” é
reconhecido. Sim, acredito que todos nós somos especiais e temos o direito de
nos sentirmos assim. E essa é uma coisa curiosa. Se todos, ou quase a
totalidade, somos especiais, ninguém é especial. Concorda? Aliás, é exatamente
essa equação que tentamos resolver nas terapias. Essas afirmações são
verdadeiras, no meu entender – e complicadas! Se tivermos um pensamento binário
ou maniqueísta, no qual tudo tem de ser classificado como bom ou mau, certo ou
errado não conseguiremos fechar essa conta. Mas, eu repito: fuja do pedestal,
como o diabo foge da cruz, tenha você resolvido ou não essa equação. Em tempos
de pandemia, estar longe do pedestal e da cruz pode ser um fator de força
interior para passarmos por essa fase.
Defendo a fuga do pedestal, porque quando estamos
nesse lugar – ou quando colocamos alguém nesse espaço hipotético –, não
garantimos a ocupação de uma posição de destaque; na verdade, garantimos um
isolamento e anulamos a oportunidade do pertencimento, do confortável lugar de
humanidade, do lugar em que devemos estar para sermos nós mesmos – ou seja,
aquele lugar em que podemos tentar, acertar, errar, corrigir, tentar novamente.
E o que é o pedestal? É a prisão em que colocamos
pessoas, ou nos deixamos colocar; um espaço onde tudo o que conseguimos ver são
as expectativas alheias e tudo o que sentimos é uma enorme solidão e o medo
paralisante de dar um passo em falso. Então, esse é outro aspecto importante:
além de não se deixar aprisionar em um pedestal, por favor, não condene ninguém
a esse lugar cruel e irreal. Estamos em um contexto de distanciamento social;
um momento em que podemos olhar para dentro e iniciar um processo de
reconstrução; de alinhamento de expectativas; de aceitação de que os planos
traçados para 2020 devem ser revistos e alterados.
Diante das mudanças trazidas por esse vírus,
dedicamos os dias a buscar um herói. Entretanto, deveríamos buscar e reconhecer
pessoas que, em razão da própria experiência, conhecimento e atitude são
capazes de nos ajudar. A busca por nossa humanidade e a construção de uma nova
sociedade mais igualitária requer darmos mais um passo na direção desse ser
humano mais real e profundamente empático. Enquanto continuarmos na fantasiosa
busca de fadas e heróis, duas tristes consequências advirão.
A primeira, acreditando que existem pessoas
perfeitas, vamos nos deixar levar por discursos daqueles suficientemente
malucos e/ou mentirosos que se apresentam como salvadores. Na segunda situação,
não nos sentiremos capazes de colocar a nossa mão para girar a roda, porque –
conscientes da nossa imperfeição – concluiremos que não estamos à altura dessa
missão.
Com essa reflexão, chega de buscar a nota 10! Vamos
compreender que um oito ou nove são notas mais do que suficientes para que
possamos fazer essa roda da transformação social girar para o lado – e com a
velocidade que achamos correta. Vamos parar de descartar pessoas por elas não
terem acertado a questão final que lhes daria a nota 10. Lembra, combinamos que
a nota oito ou nove está mais do que bom. Talvez até seis ou sete – que
significam mais acertos do que erros. E, se afastamos a nota oito para abrir
espaço para um eventual 10, também estamos abrindo o mesmo espaço para as notas
quatro, três ou zero.
Então, gostaria de propor um trato: vamos passar a
aplaudir as notas oito – nossas e dos demais – e, quando reconhecermos um erro,
lembremos de que isso apenas significa que não será possível o 10, mas que
estamos perfeitamente satisfeitos com o oito. Assim, teremos a paz de espírito
e lucidez imprescindíveis para promovermos as transformações humanas
necessárias. Que seja possível emergir do mundo pós-pandemia um novo pacto
social.
Thays Martinez - formada em Direito pela
Universidade de São Paulo (USP). A advogada, palestrante e empreendedora social
possui especialização em Direito Penal e em Interesses Transindividuais; e MBA
em Marketing de Serviços. Deficiente visual desde os quatro anos, Thays foi
conselheira do Conselho Nacional de Assistência Social e membro da comissão de
Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB. Voluntária de Relações
Institucionais do Instituto Magnus, a advogada é consultora e ministra
palestras em empresas (públicas e privadas) e em estabelecimentos de ensino,
abordando temas como motivação, mudança, inovação e superação; Direito;
acessibilidade; e inclusão social. É autora do livro "Minha vida com Boris
– A comovente história do cão que mudou a vida de sua dona e do Brasil (Globo
Livros)" e idealizadora do projeto “Heróis à Vista”.
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