Diante da situação
econômica crítica provocada pela pandemia de COVID-19, muito se tem estudado e
falado sobre os impactos nas relações trabalhistas, contratos e interesses
econômicos. Entretanto, quando o assunto envolve empresas em recuperação judicial, ainda há pouco sendo abordado.
Apenas
para relembrar alguns dos princípios da recuperação judicial, é sempre importante lembrar que seu objetivo é viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira da empresa devedora. Portanto, desde o instante
inicial, quem se encontra já em processo
de recuperação judicial está criticamente
comprometido sob o ponto de vista
econômico-financeiro. E
como solução do estado crítico, a lei elegeu o próprio mercado como
o juiz da razoabilidade e da capacidade de recuperação. Ainda que o
procedimento se passe em sede judicial, o “juiz de fato” da capacidade de
recuperação de uma empresa é a sua
coletividade de credores e parceiros. É o que se conhece pela expressão business judgement rule, pela qual o mercado é melhor juiz do que o próprio Judiciário.
Em
uma situação normal de
funcionamento da Economia, uma recuperação judicial se divide em dois momentos, tendo como marco divisório a
aprovação de um Plano de Recuperação Judicial. Este é uma projeção econômica e de negócios que estabelece uma ou várias soluções para a recuperação da empresa. O Plano deve parecer
razoável para
o mercado em ambos momentos: antes de sua aprovação, como
indicativo da boa-fé ao mercado; e após a aprovação, como forma
de demonstrar o acerto do julgamento de negócio feito pelos credores reunidos em Assembleia.
Vale
ressaltar novamente que, desde a alteração do sistema legal, em 2005, o
objetivo da lei de recuperação judicial é justamente a recuperação do negócio,
algo que interessa a todos os stakeholders. É bem diferente da época das concordatas, quando somente se
dava uma moratória, ou suspensão de pagamentos, ao devedor para tentar resolver
a sua inadimplência.
Recuperar
é a palavra de ordem. Mas, como recuperar, ou manter o plano de
recuperação, quando surge uma crise geral,
sobreposta à crise particular da recuperanda?
É
nesses momentos que a lei evolui, quando a estrutura que ela
estabeleceu é posta à prova, baseando-se na boa
razão dos operadores do Direito e dos agentes de
mercado.
O
legalista, aquele que enxerga com pura objetividade, precisa deixar espaço para todos
que se propõem a interpretá-la sob a ótica da realidade, analisando o contexto atual e
fazendo projeções para o futuro a partir dessa leitura. Pense como exemplo a
declaração de falência em casos de não
cumprimento das obrigações assumidas no Plano de Recuperação. Até que ponto esta regra deve
ser observada estritamente ou, devido à pandemia, pode ser relativizada, aplicando a
Teoria da Imprevisão e forçando a revisão do Plano, desconsiderando eventuais efeitos
moratórios?
Mesmo
que grave e efetivamente imprevista a situação,
quando se cogita da Teoria da Imprevisão como fator de modificação dos negócios
jurídicos, há que se observar ainda que é
exigível das partes, como dever atrelado à boa-fé, que tentem ao máximo cumprir
o combinado,
ainda que de forma modificada. É necessário observar o dever anexo de colaboração antes de se decretar a extinção
da relação negocial.
Ou
ainda: imagine a situação de uma empresa que entrou em recuperação e, agora, se vê diante de uma crise mundial provocada pelo coronavírus, um cenário
completamente diferente do que o projetado no Plano de Recuperação Judicial. Qual a solução? Já se assinalam as primeiras medidas, ainda como
cautelares, nas quais Assembleias
estão sendo adiadas pelos juízes e está se estendendo a proteção do stay period,
prazo de 180 dias de suspensão de execuções contra a empresa.
Outras
muitas questões surgirão envolvendo empresas em situações críticas. Nossos esforços são para
compatibilizar uma lei, pensada para uma Economia e situação geopolítica
normal, para uma imprevista crise, sobreposta à crise individual. Tudo indica que,
buscando entender este novo cenário e unindo esforços que viabilizem a
recuperação judicial, iremos enfrentar esse momento de crise minimizando os
danos e possibilitando a atividade das empresas.
Jayme Petra de Mello Neto - advogado do escritório Marcos Martins Advogados
e especialista em Direito cível e societário.
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