O atual ministro da Saúde, Arthur
Chioro, revelou que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) deve cobrar
cerca de R$1,4 bilhão em ressarcimentos de planos de saúde. O valor se refere a
cobrança de exames e de terapia de alta e média complexidade feitos na rede
pública, em 2014, por usuários de planos de saúde.
O ressarcimento ao Sistema Único de
Saúde (SUS) pelos planos de saúde foi definido pela lei 9.656/98, na qual resta
claro que sempre que o portador de plano de saúde ou seguro saúde for atendido
via SUS, o Estado poderá cobrar do plano tudo o que foi gasto com este
paciente.
Antes, os planos só ressarciam o
governo em internações hospitalares e procedimentos mais simples. Com o novo
modelo de cobrança, serviços como radioterapias, quimioterapias e hemodiálises
feitos por usuários de planos na rede pública passam a ser computados e serão
cobrados das operadoras. Segundo o levantamento recente do Governo Federal, as
novas cobranças podem mais do que quadruplicar a arrecadação do governo com o
ressarcimento de plano. No ano passado, a ANS cobrou R$ 393 milhões dos planos
de saúde pelo pagamento de internações feitas na rede pública.
O assunto é polêmico e no setor
existem duas correntes quanto ao ressarcimento ao SUS pelas operadoras. Uma que
entende tratar-se de um valor devido, uma vez que, em vários casos, as
operadoras ao se furtarem em dar o atendimento, em especial em casos de alta
complexidade e de emergência, transferem sua responsabilidade contratual e
social para o Estado.
Ocorre que a Lei 9656/98, no artigo
32, dispõe sobre a determinação de que os cofres públicos sejam ressarcidos
pelas operadoras, quando prestadores conveniados ou contratados pelo SUS
prestar o atendimento aos usuários daquele plano. Embora que por um viés
distinto, a saúde privada se beneficia do dinheiro público de várias formas.
Uma delas é a própria atuação direta como prestadora de serviços aos entes
públicos, quer como contratada pelo serviço público para realizar procedimentos
não realizáveis pelo Estado, quer pelo fato de os próprios servidores públicos
preferirem atendimento médico oferecido pelo serviço privado a fim de evitar a
demora e baixa eficiência do SUS.
Oras, se é permitido em nosso país,
que a saúde (um setor essencial) seja explorada de forma privada, seria
incoerente não cobrar do setor privado por aqueles serviços prestados pelo
sistema público a usuários dos planos de saúde. Parece ser, no mínimo, moral. O
Estado tem como dever usar seus recursos para promover políticas públicas que
possam atingir ao máximo possível de cidadãos, em especial aqueles que são
financeiramente menos abastados.
Na verdade, políticas públicas servem
a todos os cidadãos universalmente, sem distinção – assim, faz-se necessário
aplicar os recursos do setor de saúde para este fim e não somente para fins
assistencialistas. Os recursos são arrecadados da sociedade e são finitos;
paradoxalmente, na área de saúde as tecnologias encarecem os atendimentos e
requerem investimentos cada vez mais altos.
Ao contrário do sistema privado que
pode praticar a lei de mercado e aumentar o preço pela contraprestação dos
serviços prestados, o Estado está quase sempre em déficit, pois não pode
aumentar os impostos arrecadados diante do aumento de seus gastos, em qualquer
área. Quando um usuário de plano de saúde é atendido por um hospital da rede
SUS – quer por sua excelência em serviços de alta complexidade, quer pela
negativa de cobertura pela operadora, quer por se tratar de uma urgência ou
emergência fora do âmbito territorial do plano; ou, porque o cidadão ao ser
socorrido em um acidente teve seu atendimento inicial em hospital público – o
Estado vê-se com a responsabilidade direta de assumir todos os custos de um
atendimento (o SUS é um sistema universal), previstos para serem suportados
pelos planos de saúde. Essa previsão é realizada pela própria operadora, ao
realizar seus cálculos atuariais para fixar as mensalidades.
Se o plano de saúde não gastou com o
paciente, aumentou seu lucro, certo? São 50 milhões de usuários dos planos de
saúde, que, ao deixarem de ser atendidos pelos credenciados e buscarem um
serviço público, proporcionam um ganho considerável para as operadoras – e
prejuízo para o Estado.
De outro lado, não é inexpressiva a
corrente que afirma haver a previsão na nossa Constituição Federal de que a
saúde é dever do Estado de forma que não poderá haver distinção entre os
cidadãos quando estes buscarem os serviços de saúde, não existindo qualquer
irregularidade em ser depositada no Estado a responsabilidade financeira para
qualquer um que busque atendimento.
Evidente que, em linhas gerais, esse
parece um raciocínio lógico-jurídico, afinal a saúde é direito fundamental e um
direito público subjetivo. A tese nesse caso é a de haver dupla cobrança do
cidadão, afinal o Estado recolhe tributos com o escopo de devolver aos cidadãos
os serviços essenciais e, mesmo assim, repassaria para as operadoras a cobrança
por um serviço pelo qual, em tese já teria recebido.
Vale registrar, no entanto, que o
Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que essa tese não deveria prosperar,
pela questão instransponível da existência de lei com tal previsão e ponto.
Há previsão legal de penalidade para
omissão de informações ou ainda para o caso de informações incorretas serem
colocadas no sistema eletrônico, mas quem fiscaliza esse sistema em um país do
tamanho e complexidade do Brasil? Há condições de a ANS saber se cada
atendimento de fato teria amparo contratual pelas operadoras (esse é um dos
requisitos necessariamente analisados para que haja o reembolso)? Caso por
caso? Não parece se afigurar essa possibilidade no cenário atual.
Na lei 9656, art. 32, § 2o, há
disposição no sentido de que caberá a ANS a obrigação de disponibilizar às
operadoras a discriminação dos procedimentos realizados para cada consumidor.
Mas, se a ANS não tiver as informações de que necessita para gerar os
relatórios ou se demorar a fazê-lo, não haverá a restituição dos valores ao
Poder Público.
A regulamentação vigente para o
repasse dos valores está na Resolução Normativa 185/2008 da ANS. O site da
Agência apresenta o longo caminho a se percorrer para finalmente se concretizar
o reembolso ao SUS pelos atendimentos realizados a usuários dos planos de
saúde. Começa por uma triagem através do cruzamento de dados do sistema de
informações do SUS referentes a identificação de usuários com o Sistema de
Informações de Beneficiários (SIB) da própria Agência.
Os interesses são nítidos: de um
lado, a iniciativa privada fazendo o que saber fazer: ganhar dinheiro. De
outro, está o Estado a representar o interesse de milhões de brasileiros,
fazendo o que tem feito historicamente: gastando mais do que pode e vendo seus
recursos sendo geridos de forma ineficiente, como se o erário fosse terra de
ninguém. E assim caminha (sem rumo) a saúde pública brasileira.
Sandra
Franco - consultora jurídica especializada em direito médico e da saúde,
presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar
da OAB de São José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de
Direito Médico e da Saúde, membro do Comitê de Ética da UNESP para pesquisa em
seres humanos e Doutoranda em Saúde Pública – drasandra@sfranconsultoria.com.br
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