“Papai, quando crescer quero ser youtuber ou influencer.’
A frase, cada vez mais comum, sintetiza uma mudança
estrutural nas referências sociais que orientam sonhos, aspirações e projetos
de vida. Em um passado relativamente recente, as escolhas profissionais
gravitavam em torno de carreiras tradicionais como médico, dentista,
engenheiro, bombeiro e advogado. Elas eram sempre fortemente pelo núcleo
familiar, pelo status social percebido, associado a essas profissões, e pela
exposição mediada pela televisão, pelo cinema e por outros meios de comunicação
de massa.
No presente, as redes sociais assumiram o papel de
principal vetor referencial. Elas não apenas exibem modelos de sucesso, mas os
tornam acessíveis, cotidianas e aparentemente alcançáveis. A proximidade
simbólica com influenciadores, criadores de conteúdo e celebridades digitais
transforma o “ser” em algo mais desejável do que o “ter” ou o “saber fazer”,
mudando o eixo de aspiração para a visibilidade, a autenticidade percebida e a
capacidade de influenciar. Essa centralidade das redes é tão significativa que desperta
preocupações sociais e institucionais, como evidenciado por iniciativas
recentes, como a decisão da Austrália de restringir o uso de celulares por
crianças e adolescentes.
Um dos efeitos mais profundos dessa transformação é
a exponenciação da individualização como força dominante no comportamento
humano. Ela passa a ser o principal filtro das atitudes, preferências, desejos
e sonhos, redefinindo não apenas a forma como as pessoas se percebem, mas
também como consomem, se relacionam com marcas, escolhem serviços e interagem
com o varejo. Nesse contexto, o indivíduo deixa de ser apenas parte de um grupo
social para tornar-se o epicentro da própria narrativa. É importante destacar
que esse processo não nasceu com a pandemia, mas foi exacerbado por ela.
A individualização já vinha se consolidando como
tendência estrutural, impulsionada pela tecnologia, pela fragmentação cultural
e pela valorização da autonomia pessoal. No entanto, o período pandêmico e o
pós-pandemia funcionaram como catalisadores poderosos, ampliando e
diversificando suas manifestações. As preferências por marcas, categorias de
produtos, serviços, experiências e até mesmo canais de venda tornaram-se mais
fluidas, personalizadas e contextuais, sempre catalisadas por plataformas
digitais e redes sociais.
Antes e de forma geral, consumidores buscavam
produtos e marcas que refletissem sua identidade e comunicassem seu estilo de
vida. Essas escolhas tinham forte ancoragem em padrões sociais, rotinas
coletivas, validações externas e expectativas de pertencimento. Havia um maior
equilíbrio entre expressão individual e conformidade social.
Quando o mundo se viu obrigado a refugiar-se para
dentro de casa, esse equilíbrio foi rompido. O indivíduo tornou-se o centro
absoluto da própria experiência. A atenção, antes fragmentada entre trabalho
presencial, convivência social e consumo externo, voltou-se para o corpo, a
mente, o mais próximo e o espaço pessoal. Esse recolhimento forçado legitimou a
individualização como valor prioritário, intensificando a busca por conforto
emocional, bem-estar, autoexpressão e controle sobre o tempo e as escolhas.
Nesse novo contexto, a individualização deixou de
ser apenas uma preferência e passou a ser um princípio fundamental da vida
contemporânea. Ela redefine expectativas, transforma relações de consumo e
desafia empresas, marcas, instituições e até mesmo a política, a compreenderem
um omniconsumidor-cidadão menos previsível, mais consciente de si, mais
exigente e profundamente influenciado pelas narrativas e dinâmicas das redes
sociais.
Estar conectado a essa constante e volátil
transformação comportamental e referencial pode ser fator decisivo na criação
de conceitos que gerem maior identidade e potencializem desempenho no consumo,
no varejo e nos serviços.
Um setor fortemente influenciado por essa evolução
estrutural em âmbito global e local – e em forte expansão – é o envolve saúde,
beleza, cuidados pessoais e bem-estar no plano de produtos, marcas e serviços.
Eu, saúde, beleza, cuidados
pessoais e bem-estar como exemplo
No período pré-pandêmico, produtos de saúde, beleza
e bem-estar ocupavam um papel complementar: os cuidados com a pele eram vistos
como uma questão estética; suplementos eram associados a performance ou nichos
específicos; e o cuidar-se era um discurso aspiracional e não essencial.
O consumo seguia tendências amplas, com soluções
generalistas e promessas mais universais, com a lógica de que “se funciona para
todos, pode funcionar para mim”.
Com o isolamento, o indivíduo passou a observar a
si mesmo com mais atenção. Sono, ansiedade, imunidade, humor, envelhecimento,
foco – tudo isso se tornou pauta cotidiana. A atenção a esses aspectos deixou
de ser apenas desejo e passou a ser aspecto crítico de sobrevivência física e
emocional.
Aí está o tsunami das “canetas” do GLP-1 como
paradigma do comportamento emergente. Em 2024, o mercado global de GLP-1 nos seus
usos para diabetes e emagrecimento alcançou US$ 53,46 bilhões e a projeção é
que possa crescer para US$ 156,7 bilhões até 2030. Estima-se que 26% desse
consumo esteja ligado a emagrecimento; esse índice deverá crescer para 31% até
2030.
Na realidade brasileira, na composição dos dois
usos, em 2024 esse mercado foi de US$ 581 milhões e deverá ser de US$ 1,38
bilhão em 2030. A participação atual de 32,5% no emagrecimento deverá evoluir
para 38,3% em 2030.
Tudo isso sem considerar a expansão prevista de consumo
pelos sucedâneos, genéricos e similares que surgirão nesse período, fazendo
crescer a própria demanda e consumo.
Beleza, saúde e cuidados
pessoais como expressões de identidade
No pós-pandemia, saúde, beleza, cuidados pessoais e
bem-estar deixaram de ser categorias isoladas e passaram a ser considerados
como expressão de identidade. Cuidar do corpo e da mente se tornou uma forma de
afirmação individual e um gesto de autonomia em um mundo instável, mutante e
mutável.
Esse movimento explica de alguma forma parte o
crescimento de cosméticos e tratamentos contínuos, a explosão de suplementos
funcionais e bebidas wellness, a valorização de marcas com discurso gerando
empatia, inclusão e transparência e a ascensão de rotinas de cuidados pessoais
mais específicas.
E também ajuda a explicar, no Brasil, o forte
crescimento do setor de farmácias, drogarias e similares que temos acompanhado.
No acumulado dos últimos 12 meses até outubro, último dado publicado pelo IBGE,
o crescimento nominal do varejo ampliado foi 4,5%, enquanto o setor que envolve
artigos farmacêuticos, perfumaria e cosméticos atingiu 8,7%. Foi quase o dobro,
um comportamento tem se repetido ao longo do tempo.
Conclusão e provocação
A individualização não foi e nem será uma tendência
momentânea. Ela se torna cada vez mais um dos eixos prioritários de decisão.
Potencializado pelo processo de envelhecimento da população no mundo, e em
especial no Brasil, emergiu um comportamento que exacerba o “eu” em relação ao
coletivo.
Sem nos aprofundarmos na componente e reflexos
sociais desse comportamento, é preciso reforçar que o consumidor aprendeu que
seu bem-estar, saúde e os cuidados consigo mesmo – expressões do tema
individualização – devem ser priorizados. O desempenho de todos os setores que
envolvem essa realidade mostra que existe clara oportunidade para repensar
conceitos, formatos, produtos, marcas, canais, serviços e soluções que se
alinhem com essa contínua expansão.
Vale a reflexão.
Marcos Gouvêa de Souza - fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem, ecossistema de consultorias, soluções e serviços que atua em todas as frentes do setor de consumo, varejo e distribuição. Fundada em 1988, é referência no Brasil e no mundo por sua visão estratégica, atuação prática e profunda compreensão do setor.
https://gouveaecosystem.com
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