Opinião
Há tanta diferença entre nós e
nós mesmos como há entre nós e os outros
Otto Ohlendorf era economista e advogado, falava
várias línguas e tinha uma cultura refinada, além de uma aparência atraente e
uma fala que seduziu ao próprio juiz que o condenou à morte: “Ele parece uma
pessoa legal", disse durante o julgamento. Otto Ohlendorf chefiou um grupo
de extermínio que matou milhares de homens, mulheres e crianças judias na
Moldávia e na Ucrânia. Assim como o grupo dele, cerca de 600 outros batalhões
de extermínio agiram na região durante o avanço alemão para o Leste. Da mesma
forma, 60 mil policiais alemães, muitos recrutados entre a população civil -
marceneiros, padeiros, floristas - fuzilaram centenas de milhares de judeus,
que eram alinhados em filas, de pé ou de joelhos, em covas cavadas, muitas
vezes, pelas próprias vítimas. Tudo por ordem do Führer. Tudo pelo bem do
Reich. Só o Batalhão de policiais de Hamburgo, com pouco mais de 50 homens, foi
responsável pela morte de quase vinte mil judeus.
O que é mais relevante nessa trágica história,
contada pelo documentário Homens Comuns : assassinos do Holocausto,
com direção e roteiro de Manfred Oldenburg, é que esses cidadãos alemães não
eram obrigados a essa prática de extermínio sistemático, como se costuma
imaginar e como vários alegaram nos julgamentos - “se eu não fizesse aquilo eu
seria morto" - mas, mesmo assim, a maioria deles aceitou a tarefa e,
muitos mostraram-se realmente à altura do encargo sombrio. Um deles chegou a
levar a esposa para mostrar o seu “trabalho" em um dia no qual, ao
desocupar um gueto, mil judeus foram assassinados pelo batalhão ao qual ele
orgulhosamente pertencia. Outro não se contentava em alinhar e atirar na cabeça
de mulheres e crianças indefesas, mas as despiam e exigia que elas rastejassem
até o fundo da vala, enquanto incitava seus companheiros a bater nelas com
porretes.
Esses homens comuns, na sua grande maioria,
sobreviveram à Segunda Guerra e permaneceram como quadros das forças policiais
alemãs, sem qualquer investigação ou punição. Alguns, como Otto Ohlendorf,
foram presos e condenados à morte. Aliás, quando lhe perguntaram se ele se
arrependia do que havia feito, ele simplesmente respondeu: "Faria isso com
minha filha se me fosse ordenado". Antes de sua execução, o assistente do
promotor e responsável pela pesquisa que descobriu o papel relevante desses
batalhões no extermínio de judeus (calcula-se que dos seis milhões de judeus
mortos, cerca de dois milhões tenham sido executados em fuzilamentos realizados
por estes grupos), Benjamin Ferencz foi ao quarto de Otto, esperando que ele
mandasse alguma mensagem para a esposa e filhos, mas nada conseguiu. Otto, um
homem sem nenhum passado traumático ou história de vida marcada por violência,
acreditou em seu chefe e executou suas ordens porque considerava que eram boas
para a Alemanha. Quando perguntaram a ele por que matar também as crianças, ele
respondeu: “Para que elas não cresçam e se tornem um perigo para a Alemanha do
futuro”.
Fica claro como a violência coletiva pode ser
resultado de comandos desumanos de governos cruéis e brutais. Essa cadeia de
ordens vinda de cima para baixo pode despertar as mais violentas ações em
indivíduos comuns. A questão que resta é: por que pessoas com boa
educação acatam essas ordens estapafúrdias? O neurocientista David Eagleman
aponta uma possível resposta: o eu consciente é o menor participante no cérebro. Ou,
como diria o poeta Walt Whitman: “Sou vasto, contenho multidões”.
A Alemanha, após o fim do governo nazista,
empenhou-se em construir uma cultura democrática e inclusiva. Praticamente
todos aqueles que participaram de atrocidades durante os anos de Hitler
colaboraram com o novo governo. Voltaram aos seus silêncios contidos, às suas
atividades diárias, ao respeito da lei e dos direitos, guardando dentro de si,
um demônio terrível que os habita, às vezes sem nem mesmo ter consciência, à
espera de um novo comando vindo de cima.
Daniel Medeiros - doutor em
Educação Histórica e professor no Curso Positivo. @profdanielmedeiros
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