Quem acompanha essa coluna deve ter notado que, se eu pudesse, escreveria sobre futebol toda semana. Faço parte dos duzentos milhões de técnicos de futebol do país. Como tenho autocrítica e essa não é uma página esportiva, guardo as minhas metáforas futebolísticas para momentos específicos, como quando perdemos a Copa do Mundo ou algo significativo ocorre. Como o São Paulo foi campeão da Copa do Brasil, algo muito significativo ocorreu, então, me perdoem, leitora e leitor dessas mal tecladas linhas. Até porque técnico de futebol tem algo de psiquiatra, e vice-versa.
Sou de uma família de descendente de italianos, dos
dois lados. Virei são-paulino nos anos setenta, aprendi a ler antes de todos,
lendo a página de esportes do jornal. Virei são-paulino quando o Palmeiras
ganhava tudo, no tempo da Academia: um time inesquecível, que lembro de cabeça
e que estragava meus Domingos. Veja como o amor pelo tricolor foi forte e acima
de modinhas ou glórias passageiras.
Todos os clubes têm nos jogadores o seu panteão de
ídolos e heróis. O maior ídolo do São Paulo é um técnico: Telê Santana. A maior
decepção de minha vida no futebol ocorreu com um time do Telê Santana: a
seleção brasileira de 1982. Todo dia 05 de Julho eu lembro. Uma seleção mágica,
inovadora, moderna, que perdeu para um time quadradinho e com um centroavante
em dia iluminado, Paolo Rossi. Telê Santana se redimiu uma década depois,
guiando o São Paulo a vencer o mundial interclubes contra o Dream Team do
Barcelona. Aquele time tinha um herói arquetípico, Raí, mas no papel, era um
time muito inferior ao Barcelona. Telê nunca teve medo de nenhum time, e sempre
fez o São Paulo jogar de igual para igual com todos eles. Deu projeção e
títulos internacionais para um clube que se permitiu sonhar com Tóquio porque
tinha um mestre segurando o manche e dizendo para onde ir. O São Paulo foi
campeão da Copa do Brasil, o primeiro título relevante após onze anos. O que a
torcida cantou: “Telê, Telê, olê, olê, olê, olê...”
Telê tinha algumas coisas de Steve Jobs: uma visão
do jogo de uma maneira orgânica e integrada, uma visão de futuro que sempre
fazia que acreditasse nas vitórias, contra qualquer um e um apego obsessivo aos
detalhes e à perfeição que fazia trabalhar com ele algo próximo do Inferno e da
exasperação. E, dentro de toda a sua chatice, conseguia fazer seus jogadores
jogarem mais do que esperavam de si mesmos. O trabalho de um psiquiatra não é
tão diferente disso. É muito importante uma visão clara do diagnóstico: o que
está errado e o que se faz para consertar. É preciso compartilhar e transmitir
a sua visão para os jogadores, quer dizer, os pacientes. E o tratamento deve
infundir coragem e resiliência para enfrentar algumas das piores doenças que um
paciente pode enfrentar, como uma Depressão grave, por exemplo.
Telê, e o São Paulo do Telê, pairam como um
fantasma sobre a mente dos jogadores, técnicos e dirigentes do São Paulo. No
ano passado, chegamos à final de uma Copa Sul Americana, contra um time
equatoriano, o Independiente Del Vale, com um orçamento dez vezes menor.
Perdemos e, pior, perdemos amarelando, coisa frequente no time assombrado por
fantasmas do passado e a obrigação de ganhar.
Em 2023 ganhamos de um time bem melhor que o nosso,
o Flamengo. Melhor no papel, porque, em campo, é um amontoado de jogadores sem
unidade, sem o espírito de um time. Dorival Júnior, chamado por alguns de
Dorival Santana, resgatou o orgulho e espírito de grupo de um time humilhado e
desacreditado. Um diretor do Palmeiras comparou algumas contratações como
“tralha”. O Palmeiras, para desgosto dos palestrinos de minha família, também
caiu diante da “tralha” tricolor.
Nessa final, o time entrou desconcentrado e
inseguro. Não deu cinco minutos e o Flamengo já tinha ficado cara a cara com o
goleiro duas vezes. Velhos fantasmas começaram a frequentar a minha cabeça. O
Flamengo abriu o placar. Pronto. Estamos lascados. Empatamos com um chutaço de
fora da área. No intervalo, Dorival arrumou o time, que veio para ganhar no
segundo tempo. Senhor do próprio medo. Quem ganha, não ganha ignorando o
próprio medo. Quem ganha, o faz com o medo a tiracolo, fazendo a pessoa ficar
mais atenta, mais esperta, atacando a bola como um prato de comida. Essa deve
ter sido a mágica do Dorival: transformou o medo em foco, em vontade. Quando a
pessoa finge ignorar o medo, ou finge que não tem medo, vai sentir as pernas
tremendo quando menos se espera. O medo vem junto e, se possível, te deixa
muito mais afiado diante do perigo. O medo é como um vampiro: só resiste no
escuro. Quando a luz do sol bate nele, desaparece. E o sol é a consciência do
medo e a vontade de não perder, antes de ganhar.
Foi assim que o São Paulo venceu o medo. E o
Flamengo. E a torcida gritou o nome do Dorival.
Marco Antonio Spinelli - médico, com mestrado em
psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação
younguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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