O fanático é aquele que não duvida. É uma pessoa inteira, plena, sem fraturas. Por isso, completamente fora da realidade. Tudo, na natureza física e humana, é contingente, precário, fluido e temporário. Mas na mente do fanático isso não é real. Para ele, o certo é aquilo que é possível submeter a uma régua absoluta e atemporal. O resto, o que não se enquadra, encaixa, adequa, é falso, perigoso. Por isso deve ser eliminado, anulado, cancelado, expulso. Porque macula, ameaça, interrompe, corrompe a pureza do certo, que é certo porque não admite circunstâncias.
O fanático quando pensa desse jeito, não pensa em si. Age pelo que
considera ser o bem dos outros. Sente-se responsável por acreditar ser um dos
poucos a enxergar limpidamente, enquanto tantos não conseguem dissipar a nuvem
escura que se forma diante de seus olhos. E, por causa disso, precisam ser guiados,
mesmo contra a sua vontade, pois se trata de uma vontade condicionada pelo mal,
portanto, falsa, traiçoeira, ignóbil.
O fanático não se importa que a maioria pense diferente dele, porque
conhece o sentido da palavra “eleito” e sabe que poucos terão acesso ao
conteúdo verídico do que, de fato, faz diferença. E os eleitos, porque são os
eleitos, têm o dever de nunca se eximir de suas responsabilidades, seja contra
os hereges - que desvirtuam a verdade -, seja contra os inocentes - que
desconhecem e são fracos diante dos argumentos dos falsos.
O fanático vê-se como um salvador, um libertador. E tudo o que
enxerga de puro e belo em si é o que faz com que seja um agente perigoso para
qualquer sociedade democrática e plural.
Há fanatismo em todas as instâncias. Há o fanatismo político, de
costumes, o fanatismo de ideias e de crenças. E, como é possível imaginar,
existe uma irresistível atração entre as diversas formas de fanatismo, criando
correntes que se aliam ou mesmo se sobrepõem, ou ainda se enfrentam - fanáticos
contra fanáticos - em facções nas quais uma exigência maior de postura ou
pensamento cria uma camada ainda mais profunda de distanciamento da realidade,
aprisionando o fanático em um mundo próprio, impermeável, quase insondável, ao
qual é comum (e equivocado) chamar de loucura.
O fanatismo é resultado de uma busca simplória de explicação das
complexidades da vida e dos indivíduos. O fanático é, por definição, um
ignorante. Não propriamente um ignorante por falta de condições, acesso ao
conhecimento, mas, muitas vezes, por recusa deliberada. Quantos professores,
médicos, advogados, pessoas com idade e experiência abriram mão das convicções
construídas pela civilização e embarcaram no universo místico das certezas
dadas e irrefutáveis. O fanático é um desistente da vida. É um entusiasta da
ideia de que carrega consigo um segredo que precisa ser partilhado por todos, a
qualquer custo. Daí o risco que representa.
É comum afirmarmos que o contrário da verdade é a mentira. Mas o
contrário da verdade é a certeza. A verdade é sempre histórica, mesmo que
algumas dessas verdades - particularmente os axiomas matemáticos - sejam
bastante resilientes ao tempo. No entanto, mesmo elas, acabam, em algum
momento, sendo questionadas.
Sócrates, quando formula sua crítica aos sofistas, diz que sabe que nada
sabe, mas busca sempre o saber. É um amante do saber e não um sábio. Ser um
sábio é ter chegado ao fim da estrada e ela nunca tem um fim. Dessa resistência
- que custou-lhe a vida -, Sócrates deixou o legado que é tão importante
resgatar: lutar contra essa doença da certeza que nos encurrala na superfície
de frases soltas e gestos violentos, e assumir na nossa contingência e
fragilidade nossa maior virtude: a de sermos projeto individual e projeto
coletivo, capazes de pensar utopias e construir soluções mais amplas,
plausíveis e compartilháveis para o nosso tempo.
Daniel Medeiros - doutor em Educação Histórica e professor de
Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros
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