Nas duas últimas décadas, diversos choques afetaram profundamente as cadeias globais de valor. Tivemos a quebra do Lehman Brothers, em 2008, e a subsequente crise financeira, passamos pelo terremoto e tsunami, que arrasaram a usina nuclear de Fukushima em 2011, interrompendo a atividade de importantes fábricas japonesas e culminamos com a pandemia da Covid 19, que paralisou fábricas no mundo todo, causando insegurança e desabastecimentos.
Já a partir de 2011, nas manufaturas dos principais
países produtores de bens industriais, o conteúdo importado parou de crescer e,
regra geral, passou a declinar. As relações entre os EUA e a China, mudaram a
partir de Trump, para uma atitude de rivalidade, e até de hostilidade, o que
abalou ainda mais a globalização e, na sequência, a pandemia confirmou os
riscos da excessiva dependência das cadeias globais e mostrou a importância da
produção local.
Poder contar com um nível confortável de produção
doméstica, tanto em matéria de insumos e equipamentos de saúde, quanto de bens de
capital e outros produtos essenciais à segurança nacional, passou a ser tão
importante, depois desta crise pandêmica, como sempre foram a segurança
alimentar, a militar e a energética. A redescoberta da importância da indústria
está ocorrendo ao mesmo tempo de uma profunda mudança tecnológica, na própria
indústria.
O surgimento de um novo paradigma produtivo,
baseado na digitalização, na internet das coisas, na ampla utilização de
sensores inteligentes e no uso intensivo da big data e da inteligência artificial,
abre oportunidades a quem tiver vontade política, para renovar seu setor
industrial e torna-lo mais competitivo, condição indispensável tanto para
aumentar a participação da indústria no PIB, quanto para alcançar a “segurança
industrial”.
Esta oportunidade tem sido percebida pelos países
desenvolvidos mais importantes que, a partir da segunda metade da década
passada, tem revisitado o papel do Estado na economia, mudando seu
posicionamento e passando a defender tanto políticas públicas de desenvolvimento,
quanto políticas industriais, com os objetivos de aumentar a capacitação
tecnológica e a competitividade de seus respectivos setores industriais e,
assim, fortalecê-los.
Deixando de lado a China, onde o desenvolvimento
sempre foi função do Estado, a Alemanha, com a “Estratégia Industrial Nacional
2030”, em fins da década passada, foi o primeiro país a declarar que passaria a
apoiar ostensivamente sua indústria, protegendo-a contra aquisições externas,
ajudando a capitaliza-la se necessário, e criando instrumentos adicionais de
apoio financeiro e de P&D,I para que a indústria crescesse dos 20% atuais
para 25% do PIB até 2030.
Os Estados Unidos, além de perderem, nas últimas
décadas, boa parte de sua manufatura e milhões de empregos de qualidade, exportados
basicamente para a Ásia, perderam também a liderança tecnológica e produtiva em
setores sensíveis como bens de capital sofisticados, insumos farmacêuticos e
até na produção de circuitos integrados.
Com a eleição do Biden, o governo americano passou
a defender um plano ambicioso, com um vasto conjunto de ações, coordenadas pelo
Estado, contando com recursos superiores a 5 trilhões de dólares para recuperar
a infraestrutura, gerar empregos de qualidade, investir em P&D e mão de
obra, apoiar a reindustrialização do país, para trazer de volta boa parte da
produção exportada e recuperar e manter a liderança tecnológica nos setores
chaves da economia.
O Brasil, a partir da década de 90, abandonou
o modelo de desenvolvimento baseado na industrialização e crescimento
econômico, que foi o projeto do país que uniu sociedade e governo, desde Vargas
até os governos militares, substituindo-o pela preocupação com a inflação e com
as contas públicas.
Foi a industrialização quem transformou o Brasil,
ao longo de meio século, de uma grande fazenda num país relativamente
desenvolvido, o que nos permitiu figurar entre as mais importantes economias
mundiais, fazendo os brasileiros sonharem com a real possibilidade de virmos a
ser um país de primeiro mundo. A partir da década de 80, perdemos o caminho do
crescimento e, de um país de construtores e industriais, passamos a ser um país
de economistas e contadores.
O ano do bicentenário da proclamação da
independência é uma boa ocasião para o Brasil retomar o caminho do crescimento
restabelecendo como sua prioridade o desenvolvimento, com redução das
desigualdades e respeito ao meio ambiente. Entretanto, manter o câmbio
competitivo, um controle eficaz do endividamento público e juros baixos, são
itens que, por mais importantes que sejam, são apenas meios e não fins em si
mesmos.
Um plano sério para controlar as contas públicas é
essencial para o Estado recuperar, desde já, sua capacidade de fazer políticas
anticíclicas e retomar os investimentos em infraestrutura, essenciais para gerar
empregos, criar demanda para a indústria e melhorar a competitividade da
economia brasileira.
Ainda que estas condições sejam necessárias para a
retomada do crescimento, não serão suficientes sem a utilização de políticas
públicas de desenvolvimento, como mostram os exemplos já citados. Não se trata,
simplesmente, de recuperar fábricas fechadas e sim de construir uma nova
indústria fortalecendo seus setores mais dinâmicos, aqueles mais intensivos em
tecnologia e com mais capacidade para trazer ganhos de produtividade que se
espalhem por toda a economia.
Recuperar o desenvolvimento como prioridade da
sociedade e da vontade política do Estado é fundamental para se alcançar esses
objetivos, como nossa própria experiencia histórica já demonstrou. Uma indústria
competitiva, complexa e diversificada é o caminho mais eficiente para crescer
de forma sustentada a taxas iguais ou superiores à media mundial. Para
construí-la, a mão visível do Estado terá que ser usada com todos seus
instrumentos.
João Carlos Marchesan - administrador de empresas,
empresário e presidente do Conselho de Administração da ABIMAQ
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