As políticas públicas e a atuação das instituições que trabalham para garantir os direitos da criança e do adolescente, tema debatido há vários anos no meio público, ganharam um novo sentido durante a pandemia. Conselhos tutelares, de direitos, escolas, poder público e instituições sociais, se viram diante de um desafio jamais visto por nossa geração: assegurar os direitos de crianças e adolescentes em meio a uma crise sanitária mundial.
Nesse contexto, parte da população infanto-juvenil
encontrou no ensino remoto a possibilidade de permanecer com os seus processos
de aprendizagem. Porém, essa não é a realidade para uma parcela significativa
dos brasileiros, que não contam com recursos suficientes para ter acesso à
internet, computadores e smartphones. Para eles, as aulas remotas não fizeram e
continuam a não fazer parte da rotina escolar. Além disso, a identificação das
violações de direitos e as estratégias de levar informação e proteção para
dentro dos lares também representam desafios cotidianos para as instituições
que compõem a rede de proteção.
Como forma de enfrentar o problema, inúmeras
iniciativas procuraram garantir os direitos previstos no Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA): à Liberdade, ao Respeito, à Dignidade, à convivência
familiar e comunitária, à profissionalização e à proteção no trabalho, à
educação, cultura, esporte e lazer. Professores, educadores, instituições
sociais, poder público e comunidades organizadas se uniram para que crianças e
adolescentes pudessem ter os direitos fundamentais garantidos e buscaram formas
de assegurar o princípio da Prioridade Absoluta e o desenvolvimento do público
infanto-juvenil com dignidade.
A mobilização para garantir os direitos desse
público abriu ainda mais uma ferida que já era aparente. Se antes tínhamos uma
lacuna entre teoria e prática, agora lidamos com um desafio ainda maior na
garantia dos direitos de crianças e adolescentes. E o primeiro passo para
enfrentar esse longo caminho é a compreensão de que toda criança e adolescente
é um sujeito de direitos e, por isso, ressignificar o olhar para que esse
público seja protagonista e participe dos processos de decisão no núcleo
familiar e demais espaços de convivência é fundamental.
Em um panorama que já não era positivo, a pandemia
deixou sinais ainda mais preocupantes. Segundo uma estimativa publicada na
Revista Lancet em julho deste ano, ao menos 130.363 crianças brasileiras de até
17 anos ficaram órfãs por causa da covid-19 entre março do ano passado e o
final de abril deste ano. São os “órfãos da pandemia”, acolhidos pelas chamadas
“famílias extensas”, que são do núcleo familiar ou agregado que compartilham do
mesmo lar. Sem falar no luto, que tem um impacto inegável no desenvolvimento
psicológico dessas crianças e adolescentes.
É sob esse cenário que o Estatuto completa 31 anos.
Considerado um marco para a evolução dos direitos civis no país nas últimas
três décadas, o ECA foi o responsável por uma mudança considerável nos
indicadores da violência e exploração infantil no Brasil, mas se vê diante de
um novo desafio: continuar a promover os direitos à educação, saúde e
segurança, previstos pela Lei federal n. 8.069/1990, em um momento de
distanciamento social.
Além do déficit na formação educacional de crianças
e adolescentes, a pandemia também criou outro problema alarmante relacionado ao
afastamento da escola e da sociedade em geral: de acordo com o Ministério da
Mulher, Família e Direitos Humanos, as denúncias de violência contra crianças e
adolescentes apresentaram queda de 12% durante os meses da pandemia em 2020. Os
dados também explicam o motivo desta queda ser um problema: 69% dos casos
registrados pelo “Disque 100”, do governo federal, mostram que familiares e
conhecidos são os principais agressores. Sem o contato com professores, colegas
e demais membros da comunidade, as oportunidades de denúncia reduzem
consideravelmente.
O caminho para a solução desses problemas passa
pela compreensão do contexto no qual estão inseridos a partir de uma
perspectiva global, ao compreender onde vivem estas crianças e adolescentes, de
que forma vivem e, principalmente, com quem estão enfrentando a pandemia em
reclusão domiciliar. Os direitos da criança e do adolescente são
inter-relacionados, interdependentes e indivisíveis. Cada direito precisa de
outro para sair da teoria e entrar na prática. Precisamos atuar em todas as
frentes, garantindo que o ECA seja aplicado de forma integral e faça valer cada
uma de suas linhas.
A gestão pública, governos municipal, distrital,
estadual e federal, precisa reafirmar seu compromisso com a prioridade absoluta
em suas leis orçamentárias para o adequado investimento no público
infanto-juvenil. É necessário garantir condições seguras para o funcionamento
de escolas, assim como assegurar direitos básicos e a preservação de políticas
de proteção social voltadas a crianças e famílias em situação de
vulnerabilidade.
A solução também vai além de leis e políticas
públicas. É hora de recuperarmos aquilo que é da natureza humana: o afeto, o
acolhimento, a empatia. Precisamos ver no outro um irmão, alguém que tem a
mesma origem e também vive desafios. É hora de ser menos artificial e
individual. E, principalmente, de valorizarmos os extremos da vida. Assim como
a terceira idade, a infância tem seu valor e não deve ser apressada. Temos que
viver cada fase em sua plenitude, sem arrependimentos e possibilitar que todos
tenham essa mesma chance. O ECA já nos mostrou o caminho - cabe a nós seguirmos
o exemplo e exigir o seu pleno cumprimento.
Clemilson Graciano Silva -
Analista de Missão e foi Presidente do Conselho Distrital dos Direitos da
Criança e do Adolescente no Distrito Federal; Débora Reis é Analista de
Projetos do Centro Marista de Defesa da Infância e Conselheira do CEDCA no
Paraná e Ir. Sandro Bobrzyk é coordenador do Centro Marista de Promoção dos
Direitos da Criança e do Adolescente no Rio Grande do Sul.
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