Estudo publicado na revista Frontiers in Marine Science é o primeiro a prever o impacto de mudanças de longo prazo na temperatura da superfície oceânica sobre a diversidade microbiana local; metodologia também é inovadora (visão aérea do Navio Polar Almirante Maximiano; foto: Luciano Candisani)
Tentar “simular a vida” usando uma
técnica de inteligência artificial conhecida como machine learning para prever o impacto do aumento
da temperatura na superfície do oceano Austral em microrganismos que o habitam.
Esse foi o objetivo do trabalho realizado por uma equipe multidisciplinar que
inclui o oceanógrafo Marcos Tonelli e a bióloga Amanda Gonçalves Bendia,
pós-doutorandos e professores colaboradores do Instituto Oceanográfico da
Universidade de São Paulo (IO-USP), além de outros cinco cientistas da
instituição: Juliana Neiva, Bruno
Ferrero, Ilana Wainer, Camila Signori e Vivian Pellizari.
No estudo,
os pesquisadores consideraram quatro cenários de emissões para avaliar a
sensibilidade da superfície do oceano Antártico ao aquecimento global.
Trabalhando com microrganismos que compõem a base da cadeia alimentar,
descobriram uma tendência de diminuição de alguns seres envolvidos em processos
biogeoquímicos cruciais, produtores de nutrientes necessários a eles e a muitas
outras formas de vida. Além disso, também detectaram um aumento de alguns
grupos que dependem do consumo desses nutrientes, pois não produzem seu próprio
alimento (heterotróficos).
Foram
usadas no estudo duas formas de predição. Na primeira, intitulada índice de diversidade,
os cientistas tiveram como foco as diferenças na redução da diversidade de
organismos conforme os cenários.
“Num cenário de maior emissão,
teremos perda significativa de diversidade”, adianta Tonelli, primeiro autor
do artigo,
publicado recentemente na revista Frontiers in Marine Science.
A segunda foi a predição relativa a
grupos taxonômicos específicos (no nível de ordem), na qual a equipe percebeu
que grupos muito importantes para o ambiente, e não só da Antártica,
apresentaram diminuição na abundância. O trabalho tem apoio da FAPESP por meio
de dois projetos (12/23241-0 e 18/14789-9).
Metodologia inovadora
Os quatro
cenários socioeconômicos considerados pelos cientistas foram estabelecidos no
âmbito do Programa Mundial de Pesquisa do Clima (WCRP, na sigla em inglês), que
coordena o desenvolvimento de modelos do clima e do sistema terrestre pelos
principais centros de modelagem do mundo, no âmbito de um projeto denominado
Coupled Model Intercomparison Project, agora em sua sexta fase (CMIP6). Os
modelos do CMIP6 simulam o clima em diferentes cenários de atividade humana
sobre o ambiente no futuro, denominados SSP (caminhos socioeconômicos
compartilhados, na sigla em inglês).
Para esse estudo, foram considerados
quatro cenários SSP que ilustram os possíveis drivers antropogênicos
do aquecimento global: SSP1-2.6 (o caminho da sustentabilidade, com baixo
desafio para mitigação e adaptação); SSP2-4.5 (o meio-termo, com desafios
médios para mitigação e adaptação); SSP3-7.0 (cenário de rivalidade regional,
com grandes desafios para mitigação e adaptação); e SSP5-8.5 (cenário de
desenvolvimento movido a combustível fóssil, com grandes desafios para a
mitigação e baixos desafios para a adaptação). As mudanças na temperatura de
superfície do oceano Austral correspondentes aos diferentes cenários SSPs são,
respectivamente: aproximadamente 0.3oC; 0,7oC; 1,25oC; e 1,6oC o entre 2015 e 2100.
“Os
cenários de altas emissões projetaram um surgimento muito mais precoce da
mudança de temperatura induzida pelo homem em todo o oceano Austral”, adianta
Tonelli.
Já os
dados da comunidade microbiana foram obtidos a partir de estudos publicados
anteriormente no âmbito do Programa Antártico Brasileiro e correspondem a um
total de 105 amostras de águas superficiais coletadas no noroeste da Península
Antártica e a noroeste do mar de Weddell. Bendia participou de vários desses
estudos, conduzidos por Signori e Pellizari.
“Fizemos coleta de amostras de
água in situ, em vários pontos diferentes (a aproximadamente
5 metros de profundidade). Filtramos grandes quantidades de água para
concentrar esses microrganismos. O objetivo era analisar todos os seres que
encontrássemos no meio; focamos a diversidade do ambiente. Fizemos a extração
de DNA das células e o sequenciamento. Esses dados microbiológicos foram
obtidos em projetos anteriores financiados pelo Programa Antártico Brasileiro
[Interbiota, EcoPelagos, Microsfera e Criosfera], com participação das
professoras Camila Signori e Vivian Pellizari. O Marcos Tonelli deu a ideia de
reunirmos as amostras e os dados que tínhamos para incluir no modelo. E
tínhamos dados de vários anos”, explica Bendia.
Finalmente, para “simular a vida” os
pesquisadores usaram ferramentas de machine learning.
Trata-se de um ramo da inteligência artificial que estuda a construção de
algoritmos que operam a partir de inputs amostrais,
elaborando um modelo com o objetivo de fazer previsões ou embasar decisões
(guiadas pelos dados fornecidos).
“Eu
trabalho com projeções climáticas, modelos globais. E o problema desses modelos
climáticos é que não conseguem simular a vida. Eles são basicamente alicerçados
em equações físicas. Modelar numericamente a parte física é mais fácil. Mas a
vida, os processos biológicos, ainda não encontramos equações que deem
conta disso com acurácia. Então, pensamos: se não conseguimos que esses modelos
reproduzam os impactos na vida [no caso, comunidades microbianas], o que
podemos fazer?”, relembra Tonelli.
De acordo com o artigo, algoritmos
como o Random Forest (RF, ou Floresta Aleatória, na tradução literal) e as
chamadas redes neurais (modelos computacionais capazes de realizar machine learning e reconhecimento de padrões) são
algumas das ferramentas mais eficazes para analisar dados de microbiomas.
“Por isso, decidimos usar um modelo
de RF para investigar a resposta microbiana às mudanças de longo prazo da
temperatura da superfície do mar, em termos de diversidade e composição.
Trata-se de um modelo de machine learning que
combina várias árvores de decisão, treinando cada uma delas em um conjunto
ligeiramente distinto de observações e emitindo uma predição final de acordo
com o resultado de cada árvore de decisão”, revela o oceanógrafo.
O grande
desafio, segundo ele, foi fazer a calibragem do equipamento. “Para ‘treinar a
máquina’ a reproduzir a realidade é necessária uma quantidade grande de
amostras. Tínhamos 105 amostras, então usamos cerca de 80 no treinamento e
deixamos o resto para testar a calibragem. Sabemos o que é a realidade porque
temos as amostras colhidas lá na Antártica. Então, vamos ajustando a máquina
até ela conseguir reproduzir a situação real. E, por fim, inserimos os dados
climáticos e vemos a resposta que o modelo nos dá.”
Segundo ele, é a primeira vez em que
o recurso de machine learning é usado para
esse fim. E a metodologia pode ser replicada em outros ambientes (oceanos).
Resultados
As
simulações indicam uma diminuição na riqueza e na diversidade das comunidades
microbianas em todas as projeções climáticas, sendo que as emissões mais altas
causariam uma diminuição mais significativa, especialmente no cenário mais
crítico (SSP5-8.5).
Enquanto o
cenário de baixa emissão (SSP1-2.5) projetou pequenas mudanças na abundância
relativa de microrganismos, os três cenários com o maior aumento na
temperatura, incluindo o cenário do “meio-termo”, mostram mudanças na estrutura
das comunidades microbianas que incluem a perda de diversidade e a diminuição
na taxa de microrganismos importantes para os processos biogeoquímicos e o
funcionamento do ecossistema no noroeste da Península Antártica e a noroeste do
mar de Weddell.
Bendia
destaca uma arqueia da ordem Nitrosopumilales que oxida a amônia. Ela
explica que toda a vida na Terra está dividida em três grandes domínios
(Bacteria, Archaea e Eukarya), e o domínio das arqueias ainda é pouco estudado.
“Esse
grupo de arqueia da ordem Nitrosopumilales faz a oxidação de amônia e fixa
dióxido de carbono [CO2], sendo relativamente conhecido pela ciência. É bem
abundante na Antártica, pois gosta de águas geladas. E nele notamos uma redução
drástica após a predição. Essa arqueia faz um processo de remineralização da
matéria orgânica, faz a ciclagem de nutrientes do ambiente para que outros
microrganismos usem. Se houver interrupção nesse processo, os outros
microrganismos não vão ter nutrientes. Há outro grupo, esse de bactérias, que
faz oxidação de compostos de enxofre, que também diminuiu. Certos compostos de
enxofre na forma reduzida podem ser tóxicos para alguns organismos do ambiente,
então elas fazem a oxidação desses compostos.”
Segundo
ela, também houve redução em grupos pouco conhecidos, como uma arqueia
planctônica chamada Marine Group II. Em contrapartida, o modelo projetou maior
abundância relativa para a ordem dos Flavobacteriales, que compreende várias
famílias de bactérias heterotróficas.
“Esperávamos uma alteração na
predição feita com base nos vários cenários e modelos de machine learning, mas não imaginávamos que elas fossem
acontecer nesses grupos-chave de microrganismos, muito importantes para o
ecossistema e os ciclos biogeoquímicos”, afirma Bendia, reiterando que tais
ordens são compostas por várias espécies com papéis importantes no funcionamento
dos ecossistemas oceânicos, incluindo os ciclos de enxofre, nitrogênio e
carbono – e são atualmente consideradas abundantes na superfície oceânica.
“Estamos
falando da parte mais baixa da cadeia trófica, dos produtores primários; dali
parte toda a cadeia alimentar que chega até os grandes mamíferos. Se os
consumidores estão aumentando e os produtores não, como é que isso vai
repercutir nos níveis lá de cima? Ainda não sabemos e precisamos de um bom time
de especialistas para entender isso. Mas acredito que alguns grupos serão
privilegiados e outros sofrerão com as mudanças”, resume Tonelli.
As
implicações de uma diminuição na oxidação da amônia nos ecossistemas estudados
ainda não estão claras, mas alguns estudos de modelagem indicaram que ela pode
afetar os nutrientes, a desnitrificação (transformação do nitrato em outras
formas de nitrogênio que podem retornar à atmosfera), a produtividade marinha e
o sequestro biológico de carbono pelos oceanos.
“As mudanças de temperatura modulam a
dinâmica da comunidade microbiana marinha do oceano Austral”, concluem os
autores no artigo intitulado Climate Projections for the
Southern Ocean Reveal Impacts in the Marine Microbial Communities Following
Increases in Sea Surface Temperature, que pode ser acessado
em: www.frontiersin.org/articles/10.3389/fmars.2021.636226/full#ack1.
Karina Ninni
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/cientistas-usam-inteligencia-artificial-para-simular-efeito-do-aumento-da-temperatura-no-oceano-antartico/36947/
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