A falta de tempo tem se tornado uma constante. A tecnologia, que trouxe inúmeros avanços, agora ocupa todos os espaços – pessoas, empresas, famílias e até crianças estão imersas em um universo digital que consome cada instante diário. Um estudo realizado em Madrid, na Espanha, conduzido pelo Grupo de Sociologia da Infância e Adolescência (GSIA), revelou que 46% das crianças entrevistadas afirmaram que possuem tempo livre suficiente, percentual que aumenta para 75% no caso dos adolescentes [2]. O grande “porém” é que esse tempo é ocupado, muitas vezes, com atividades pouco produtivas ou até nocivas ao desenvolvimento.
Hoje, é comum observar tanto adultos
quanto crianças imersas em telas. Redes sociais como TikTok e plataformas de
streaming transformaram momentos de interação e brincadeira em consumo passivo
de conteúdo. Uma pesquisa recente realizada pela Mobile Time em parceria com a
Opinion Box trouxe dados alarmantes sobre o uso de telas por crianças:
intitulado “Crianças e Adolescentes com Smartphones no Brasil” [3], o
levantamento apontou que cerca de 26% das crianças entre 4 e 6 anos já possuem
um celular próprio. O dado mais impressionante é que 7% das crianças de 0 a 3
anos também já têm seu próprio aparelho.
Com isso, o tempo que antes era
dedicado ao convívio familiar ou a atividades práticas cede lugar à
conectividade constante. Essa mudança tem um preço alto: a fragmentação das
relações e a negligência de aspectos fundamentais do desenvolvimento infantil.
Esse cenário agravou-se ainda mais após a pandemia de Covid-19. Um outro estudo
analisou como crianças vivenciaram a organização do cotidiano durante a
pandemia, especialmente em relação à percepção do tempo [1]. Os resultados
apontaram para um aumento expressivo no tempo de exposição às telas, diminuição
de atividades físicas e um sentimento de tédio inicial, seguido pela
reorganização das rotinas por parte das famílias, com destaque para atividades
escolares e de lazer em formato remoto. Essa reorganização da rotina reafirma a
ideia de que o tempo ocioso das crianças é percebido como algo a ser
combatido.
Tal situação é ainda mais preocupante
considerando que a primeira infância é marcada pela formação de habilidades
cognitivas, emocionais, sociais e motoras. Essas competências, no entanto,
precisam ser estimuladas por experiências reais e interações humanas. Crianças
aprendem brincando, correndo, explorando o mundo físico e interagindo com seus
pares e com adultos presentes. Quando esses momentos são substituídos por horas
diante de telas, o desenvolvimento integral é prejudicado.
No ambiente escolar os impactos também
são visíveis. A falta de estímulo físico é evidente, com crianças que não têm
mais o hábito de brincar ou de se movimentar. Esse distanciamento do mundo
físico compromete a consciência corporal e, consequentemente, o desenvolvimento
integral. Mesmo com todas as facilidades proporcionadas pela tecnologia, há uma
perda significativa de algo essencial: a oportunidade de formar vínculos
profundos e proporcionar experiências enriquecedoras na primeira infância. O
contato humano, a troca de olhares e o tempo compartilhado são insubstituíveis
para o crescimento saudável.
Além disso, a presença emocional dos
adultos é essencial para o desenvolvimento das crianças. O vínculo que se forma
em momentos de atenção e cuidado genuínos não pode ser substituído por
mensagens instantâneas ou distrações digitais. No entanto, os próprios pais e
responsáveis, muitas vezes, se encontram igualmente imersos em telas,
negligenciando a necessidade de presença e interação.
Há, no entanto, caminhos para reverter
esse quadro. É necessário, antes de tudo, que os adultos tomem consciência do
impacto de suas próprias escolhas tecnológicas sobre o tempo e a qualidade das
relações com seus filhos. Estabelecer limites para o uso de dispositivos, priorizar
momentos de convívio sem telas e oferecer experiências reais de interação e
aprendizado são passos fundamentais. O mesmo vale para a escola: ambientes
educacionais podem servir como um contraponto ao excesso tecnológico,
estimulando brincadeiras, atividades motoras e interações humanas.
A tecnologia é uma ferramenta valiosa,
mas seu uso deve ser equilibrado. Quando o tempo é roubado pela conectividade,
perdemos algo que nenhuma inovação pode substituir: a oportunidade de formar
vínculos reais, estimular o desenvolvimento pleno e criar memórias. Na primeira
infância, a presença e a qualidade do tempo compartilhado são insubstituíveis.
O desafio está em usar a tecnologia de forma consciente, para que ela não nos
afaste do que realmente importa.
Esther Cristina Pereira - pedagoga, psicopedagoga, professora, conselheira da Escola Atuação e diretora da FENEP (Federação Nacional das Escolas Particulares).
[1] https://www.scielo.br/j/ccedes/a/mYyDVMRGPtHrWgPFBPHKsCq/
[2] https://ajuntament.barcelona.cat/infancia/es/canal/parlen-els-nens-i-nenes-el-benestar-de-la-infancia-barcelona
[3] https://www.mobiletime.com.br/pesquisas/criancas-e-adolecentes-com-smartphones-no-brasil-outubro-de-2023/
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