A música “Flores”, dos Titãs, fala que “há flores
por todos os lados, há flores em tudo que eu vejo”. Bom para os Titãs porque,
no mundo dos banqueiros centrais, as únicas coisas vistas são pressões
inflacionárias por todos os lados.
Afora todas as perdas humanas, a doença trouxe uma
desorganização nas cadeias produtivas que parece longe de acabar. Na verdade,
as coisas parecem que estão se somando em vez de se subtraindo. Um exemplo mais
direto é a questão da variante Delta, que pegou de forma mais forte os países
do Sudeste Asiático que passaram relativamente imunes à primeira onda, como a
Malásia e o Vietnã. Isso poderia ser apenas um problema de saúde pública local,
mas o mundo descobriu que boa parte das peças para o setor automobilístico ao
redor do mundo vem do primeiro e que um pedaço relevante das confecções de
grandes cadeias mundiais do último. Não por coincidência, a Nike solicitou ao
governo americano o envio de vacinas para o Vietnã como forma da produção local
retomar mais rápido.
Outro impacto relevante que estamos vendo a partir
da disseminação da Covid-19 vem da China. Com sua política de tolerância zero
com a doença, cada vez que um novo caso é descoberto, temos uma região fechada,
onde, além de fábricas, observamos também portos importantes, como o de
Ningbo-Zhoushan, o terceiro maior em movimentação de contêineres no mundo, que
ficou fechado durante duas semanas em agosto. Dessa forma, mais do que apenas
um problema de falta de matéria-prima devido às paralisações na produção, temos
um verdadeiro pesadelo logístico, com falta de contêineres para transportar os
produtos e filas nos portos para atracar os navios.
As medidas sanitárias de distanciamento social,
para evitar contaminação, agravam ainda mais o problema, uma vez que tornam os
procedimentos de embarque e desembarque mais demorados do que o normal. Os
resultados disso são atrasos nas entregas e encarecimento, não só das
matérias-primas, mas também dos transportes das mercadorias. O frete marítimo
entre os portos chineses e a Califórnia triplicou de preço desde o início do
ano. Ou seja, se quando pensamos em impactos da variante Delta sobre a
economia, pensamos em desaceleração econômica, devemos estender o nosso
horizonte para mais inflação também.
Mantendo o foco nos impactos da Covid-19 na
inflação, chegamos ao gás natural. Item especialmente importante para a alta de
preços na Europa, pode se tornar um problema mundial por ser a matéria-prima
básica para a fabricação dos fertilizantes.
As paralisações devido à pandemia, em conjunto com
um aumento da demanda, devido tanto à retomada mais rápida da economia do que a
esperada, quanto às mudanças climáticas, fizeram o preço do gás natural subir
290% nos últimos seis meses. Pensando na Europa em particular, o grande aumento
da demanda costuma ocorrer no inverno, devido ao aumento do consumo de
calefação. O problema é que, nos últimos anos, o verão também tem sido
inclemente, com as ondas de calor aumentando a utilização do ar-condicionado.
Além disso, temos a transição para a economia verde, o que tem elevado mais
ainda a demanda estrutural por gás natural, à medida que a matriz energética se
afasta das usinas a carvão na produção de energia elétrica e se aproxima
daquelas abastecida por essa commodity.
Pelo lado da oferta, além dos problemas com a
Covid-19, temos uma questão geopolítica relacionada à Rússia. Em meio à
escassez generalizada do produto, os russos iniciaram a manutenção do principal
gasoduto, o Nord Stream 1, que leva o gás dos campos do Mar do Norte para a
Europa, como forma de pressionar os países europeus a certificar o Nord Stream
2, a grande aposta econômica de Vladimir Putin. O fato é que o gás natural vem
sendo o maior fator de pressão sobre a inflação na Zona do Euro. Entretanto,
esse é apenas o impacto direto do aumento do preço desta commodity. Como
supracitado, ela também é matéria-prima básica para a produção de
fertilizantes, que já subiram mais de 100% entre janeiro e agosto de 2021. Os
agricultores ao redor do mundo estão diante do seguinte dilema: usam a
quantidade normal de fertilizantes para manter a produtividade constante, mas
veem o custo de produção subir, ou reduzem a utilização deste insumo e mantém
os gastos contidos, mas ao preço de uma menor produtividade da colheita,
reduzindo, portanto, a oferta do produto. Qualquer que seja a decisão tomada, o
resultado final será mais pressão sobre os preços dos alimentos.
Bem, por aqui não temos mais dúvida da perenidade
da inflação. Obviamente que o IPCA rodando acima de 10% no acumulado em 12
meses ajuda nessa clarividência. Entretanto, se já reconhecemos o perigo, ainda
não temos certeza de que as armas empregadas até agora serão suficientes para
afastá-lo. Nesse ponto, a Ata da última reunião do COPOM e o Relatório
Trimestral de Inflação (RTI), se não ajudaram a reduzir essa dúvida, pelo menos
indicaram qual a estratégia que o Banco Central do Brasil (BCB) pretende
utilizar para resolver o problema. Se vai conseguir ou não, vamos saber depois.
Há choques de oferta por todos os lados em várias
partes do mundo, o que faz com que a inflação seja um fenômeno mundial. Os
países emergentes, como o Brasil, que têm menos espaço para ficar em uma
discussão filosófica se ela é temporária ou permanente, já estão se movendo
para combatê-la. Mas, mesmo entre os países centrais, parece que a “ficha
começou a cair” e já vemos movimentações importantes para a retirada dos
estímulos monetários dados durante a pandemia. Isso é particularmente verdade
no caso dos EUA, que deverão começar a reduzir as compras de ativos até o final
do ano. A principal consequência dessa movimentação do BC americano já está
sendo vista nos mercados internacionais: o fortalecimento do dólar. Ou seja, um
pedaço da perda de valor da moeda brasileira está ligado menos às nossas idiossincrasias
e mais a um movimento global. Entretanto, quanto menos estivermos preparados
para enfrentar esse vento de proa, maior vai ser a desvalorização do real,
maior o trabalho que o BCB terá para trazer a inflação para a meta e,
consequentemente, pior o crescimento esperado para o Brasil. Portanto, urge
fazer o dever de casa e resolver as pendências fiscais para 2022 o mais rápido
possível, sempre lembrando que “bom, bonito e barato” só em propaganda
enganosa.
Luis Otavio Leal - economista-chefe do Banco Alfa
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