Era um domingo comum na velha Judeia, quase dois mil anos atrás. Algumas mulheres andavam apressadas pelas ruas de Jerusalém. Um boato corria entre as casas apertadas e vielas insalubres. Diziam que o profeta crucificado três dias antes pelos romanos, durante a Páscoa, havia sumido de seu túmulo. O murmurinho logo ganhou força e se transformou na base teológica de uma religião que ultrapassou as fronteiras da palestina, se tornando uma força mundial. Não é exagero dizer que esse acontecimento, seja qual for sua verdade histórica, é o mais importante pilar da cultura ocidental.
Todavia, ainda fazemos a mesma
pergunta que muitas pessoas daquela época: o que aconteceu no túmulo de Jesus?
Ainda que renegada pelas autoridades judaicas e desconsiderada pelos políticos
romanos, os discípulos não tinham dúvidas sobre a ressurreição de seu mestre.
Poucos anos após sua morte, histórias sobre encontros com um Jesus ressuscitado
já circulavam entre as primeiras comunidades cristãs. Meio século depois dos
acontecimentos, o enredo já tinha tomado os contornos que tem hoje: ele
ressuscitou e pôde ser visto. Isso aparece de forma bem clara nos evangelhos de
Mateus, Lucas e João, mas é em Marcos que estão algumas das informações mais
interessantes.
Hoje é quase consenso que Marcos é o
mais antigo entre os quatro evangelhos canônicos. Nos velhos manuscritos ainda
existentes costumam aparecer dois arremates distintos para esse livro: um,
chamado ‘final longo’, narra as aparições posteriores de Jesus; no outro, o
‘final curto’, o relato acaba abruptamente quando as mulheres chegam no túmulo
e um anjo as avisa que o mestre delas havia ressuscitado. Textualmente, parece
bastante crível que o ‘final curto’ é o mais antigo e que o outro é uma adição
posterior. Qual a importância desse debate? Um dos epílogos corrobora a
ressurreição física, mas o outro, mais sucinto, insinua que as mulheres não
viram Jesus, tendo sido alertadas por alguém.
Será que originalmente a ressurreição
poderia ter sido encarada como um fenômeno não físico? Além do polêmico
desfeche da narrativa de Marcos, há um evangelho esquecido que parece insinuar
um viés espiritual. Trata-se do Evangelho de Tomé, um texto apócrifo, não
incluso na Bíblia (como tantos outros). Lá se vê um Jesus celestial dizendo:
‘Onde há dois ou um, estou com ele (...) parta um pedaço de madeira, lá estou;
levantai uma pedra, e ali me encontrareis’. Esses relatos demonstram que muitas
discussões foram travadas para explicar o ocorrido, desde a teoria do corpo
roubado, proposta originalmente pelos dirigentes judaicos, até as aparições
espirituais ou físicas.
Sabermos que inumeráveis seitas
surgiram nesse contexto, várias, inclusive, com visões antagônicas: umas
acreditavam que Jesus era mais um profeta, outras que ele era o Messias, um
salvador que os judeus esperavam. Uns diziam que ele era o Filho de Deus ou o
próprio Deus. Alguns o viam como uma encarnação da sabedoria divina (sem um
corpo físico, sendo, portanto, incapaz de sentir dor), enquanto outros
defendiam que ele era somente um homem. O certo é que muitos pagaram com a
própria vida por espalharem essas ideias, tidas como nocivas pelas autoridades
imperiais. Esse processo persecutório se iniciou já na época dos apóstolos e inaugurou
o culto aos mártires.
Foi somente trezentos anos depois da
crucificação que uma visão se consolidou, sendo absorvida teologicamente por um
Império Romano mais complacente, liderado por Constantino: Jesus era homem e
Deus na mesma medida e ressuscitou fisicamente.
Esses debates mostram como Jesus
sempre teve vários níveis de existência. Entender Jesus é como cortar uma
cebola: ele tem muitas camadas de realidades que se sobrepõem. A cada camada
que retiramos, nos aproximamos do personagem real que viveu na palestina do
primeiro século: um camponês pobre, um andarilho pregador. Quanto mais camadas
deixamos, mais nos aproximamos do personagem religioso: o Messias, o Filho de
Deus ou o próprio Deus. Essas realidades coexistem e sempre foi assim. Afinal, para
a maioria dos cristãos, ele foi Deus e homem na mesma medida.
Sabemos que Jesus foi um personagem
histórico, com vida datável. Por outro lado, Cristo (tradução da palavra
hebraica ‘messias’) é um ente religioso, teológico e espiritual. Compreender essa
balança tênue entre os dois se tornou o fio condutor da história humana
posterior.
E tudo começa, claro, com aquele
túmulo vazio, num domingo longínquo.
Alex Fernandes Bohrer - professor
brasileiro, natural do estado de Minas Gerais. Possui licenciatura e
bacharelado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, mestrado e
doutorado em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Foi historiador da Prefeitura Municipal de Ouro Preto, produzindo uma
série de textos sobre a história deste sítio, importante Patrimônio da
Humanidade (UNESCO). Foi membro titular do Conselho de Patrimônio e do Conselho
de Turismo de Ouro Preto. Foi professor da FAOP (Fundação de Arte de Ouro
Preto), onde lecionou as disciplinas História da Arte, Iconografia Cristã e
Barroco Mineiro. É fundador e coordenador do NEALUMI (Núcleo de Estudos da Arte
Luso Mineira). Atualmente é Professor Efetivo do IFMG (Instituto Federal de
Minas Gerais), onde leciona as disciplinas História, História da Arte, Estética
e Iconografia e Simbologia. Entre outras obras, é autor dos livros “Ouro Preto
- Um Novo Olhar”, “O Discurso da Imagem - Invenção, Cópia e Circularidade na
Arte” e “Jesus - Um breve roteiro histórico para curiosos”.
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