Há muito tempo conheci alguém. Vou nomeá-la Éle. É uma mulher de se apaixonar. Depois de conversar, é de se perder nos labirintos das suas questões sobre a existência. Sei disso porque me perdi. Nos labirintos e nela. Sim, eu quis. E gostei tanto que teria ficado vagando por ela, mas não deu, ou ela não permitiu que desse. Tenho, contudo, a pretensão de ter complicado o seu existir. Se tal é verdade, eu o fiz mui acertadamente, pois ela declarava-se existencialista. Existencialista que se preze sabe o que é vida angustiada. Eu a ajudei a se angustiar. Suponho que seja por isso que me odeia.
Em determinado momento, Éle careceu de ajuda para suportar a dor do seu
existir. Na ocasião, senti-me culpado. Ela exercitava um truque: para aliviar a
vida, acreditava nas lendas da biografia doméstica que lhe contaram. Vivia uma
improvável vidinha bem desenhada. Questionava as coisas do mundo, não as da sua
história pessoal. Opus interrogações. Afastou-se de mim. As respostas ao que eu
perguntara e ao que ela seguramente se perguntou desmancharam a organização do
seu território mental. Vi tudo se desmoronar e acompanhei, de longe e o quanto
pude, o seu doloroso refazer-se.
Não, não consigo me acercar. Odeia-me ostensivamente. Olha-me e não me
vê. Bem, se me odeia tanto, ainda estou lá, eu sei. Em estando, talvez deva
continuar a conversa interrompida. Ela sabe que “a existência precede e governa
a essência”. Mas eu não sei o que essa menina que se declara interessada em
existencialismo faz com o que conhece. Não sei se ela se apropriou do seu saber
e o converteu em ferramenta de intervenção em si e no mundo, ou se o que sabe é
apenas um conteúdo de ostentação nas exibições de festas e de redes sociais. Eu
a cria maior que sua vida.
Talvez eu a tenha havido por mais e melhor do que a gente que fica tão só
na leitura, sem interagir com o lido. Quiçá creia nisso por causa do meu
encantamento. Como fui por demais encantado, desconfio por demais de mim.
Suspeito dos que somos tocados pelos caprichos da imaginação. Então, uma réstia
de dúvida preenche a minha conjetura de que Éle não se aplica em si o
suficiente: há descuidado para com a própria angústia. A angústia instigante
que brota do que lhe foi subjetivizado, ela a abafa numa opção de existência
medíocre. Ainda bem que ela me odeia. Facilita dizer não.
Claro,
mentira, queria que gostasse de mim. Mas sem concessões. O sentido da nossa
vida vem de fora de nós. Vem das materialidades que nos cercam. São as falas,
as emoções, as ideologias que nos constituem. Mas, sendo Éle existencialista,
“agora que sabe disso, o que vai fazer com você?” Cada qual está livre para
cuidar-se e condenado a se cuidar; é responsável pelo projeto de si. Daí a
terrível e formidável angústia do indivíduo. Se a vida de Éle ainda lhe dói por
isso, lamento, mas só ela pode curar a própria dor. Todavia, não fará isso em
companhia ruim. A propósito: Éle, como andará você?
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC
Psicanalista e Jornalista
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