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segunda-feira, 16 de março de 2020

Crise e perplexidade



Perplexo. Absolutamente perplexo. O mundo ante o coronavírus.  Era simplesmente impossível prever essa crise inédita, salvo em elucubrações da ficção científica cósmica.

Não temos como não tentar buscar concisa abstração da vida e  do universo, desde que empreendemos nossa aventura terrestre. Em busca do quê?  A interrogação é dolorida.

Reflitamos sobre a razão de as primeiras poesias da Grécia serem épicas, clássicas e perfeitas, mas monótonas, o épico invariável.   Nossos primeiros irmãos tinham medo de vírus. Leia-se deuses da destruição. A Homero e outros coube encorajar nossa raça. Em certos momentos de grande hecatombe é preciso encorajar os atores deste teatro de incertezas. Para os que sobreviverem, vencedores, se a decomposição da espécie não pesar unânime.

Crescemos na linguagem, na filosofia, nas ciências, porém sempre a enfrentar contradições. No plano biológico, físico, social, político. Demo-nos ao luxo de sacudir o planeta com bombas, inclusive atômicas. As heranças eram inevitáveis e aí estão.

Os mais desenvolvidos Estados do orbe estão atulhados de riquezas militares. Desperdício inútil, porquanto forças superiores - vírus, bactérias, protozoários -, já aprenderam a usar o estoque da morte, antes das armas. O equívoco foi rotundo. Deveríamos ter armazenado tiros de combate aos inimigos biológicos. Erramos o alvo, como muitos exércitos o perderam de mira em aventuras quixotescas.

Apesar dos grandes esforços da filosofia no sentido de encontrar a substância, a essência e o sentido da existência, nossa ciência das ciências não trouxe o norte para a grande humanidade. Talvez tudo deva ser refeito.

Há realismo, não radicalismo nessa análise. Basta supor que, debelado o coronavírus, um parente seu poderá voltar a nos atacar.  Viveremos em eterna defesa de sobrevivência, com esse monstruoso impacto sobre nossos costumes, nossas expressões vitais a que nos acostumamos, nosso modo de arrimar nossa civilização, nossas regras jurídicas seculares? Viveremos sem saber a natureza dos dias seguintes?

O febricitante ritmo de avanço econômico, mercados, bolsas de valores etc., pode tornar-se areia de um planeta despovoado. Nossa imensa imagem antropocêntrica já desceu muitas ladeiras, no episódio que  estamos atravessando.

Os que sobreviverão terão um compromisso duro com a lembrança das gerações mortas, que pesarão como um pesadelo sobre os cérebros sobreviventes. Consistirá em dispor todo o conhecimento, a ciência mais desenvolvida, num único sentido: o do enfrentamento desses inimigos letais. Nosso exército não será mais composto de tropas como as conhecemos, com suas típicas indumentárias. Deverão concentrar-se nos laboratórios a montar equações que nos livrem da derrocada final.

Em momentos de sobrevivência, não há outra prioridade. Para tanto, teremos de rever profundamente nossos valores, agrupando todo o gênero humano. Nacionalismos, xenofobias, são tudo o que querem nossos atacantes. Enveredam pelos segmentos divididos e engolem suas bazófias.

Podemos escrever: há dois pensamentos filosóficos. Um antes, outro depois do coronavírus. Por ora, todos se engomam numa letargia anódina.

Resuma-se a crônica das pestes.

A peste negra ou bubônica levou 50 milhões de seres humanos, na Europa e Ásia, entre 1333 e 1351. Recuou com o saneamento e grande redução dos ratos urbanos.

A cólera, transmitida por água suja e alimentos contaminados, deixou centenas de milhões de mortos de 1817 a 1824.

A tuberculose acarretou em um século nada mais nada menos que 1 bilhão de mortos. Todos conhecem nossa demorada vitória sobre o bacilo de Koch.

A varíola devastou 30 milhões de mortos, quando exacerbada entre 1896 a 1980, mas historicamente crônica, abateve Ransés II, a rainha Maria II da Inglaterra e o Rei Luis XV da França. Começo a perder para a vacina de 1796.

A gripe espanhola - e aqui precisamos maior atenção - implicou em 20 milhões de mortos. O vírus influenza, um dos maiores carrascos da humanidade, tem a capacidade ímpar de metamorfosear-se e ludibriar suas vítimas. É preciso investigar com muito apuro esse rodízio macabro. Entre nós matou o Presidente Rodrigues Alves e persistiu em sua dança diabólica.

Seguiram-se o tifo, a febre amarela, o sarampo, a Aids. O enfrentamento desses males pela civilização humana se torna cada vez mais complexo.

O aviso atual é peremptório. As ciências médicas, mais uma vez, devem mostrar sua superioridade. Recursos públicos derivados a outros setores realocados e, em nosso país, reduzir drástica e o mais imediatamente possível nosso déficit em saneamento básico. E admitir tranquilamente a blindagem individual e familiar, ainda que a custo de nossa tendência irrefreável à vida social. Nessa circunstância não há lugar para populistas, demagogos e levianos, principalmente quando se trata do Presidente da República.





Amadeu Garrido de Paula - poeta e ensaista literário, é advogado, atuando há mais de 40 anos em defesa de causas relacionadas à Justiça do Trabalho e ao Direito Constitucional, Empresarial e Sindical. Fundador do Escritório Garrido de Paula Advocacia e autor dos livros: “Universo Invisível” e “Poesia & Prosa sob a Tempestade”. Ambos à venda na Livraria Cultura.


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