"Mas temos tamanha dificuldade em perceber a
diferença entre a sucessão na duração verdadeira e a justaposição no tempo
espacial, entre uma evolução um
desenrolamento, entre a novidade um rearranjo do preexistente; enfim entre a criação a mera escolha, que
importa em iluminar essa distinção pelo maior número possível de lados ao
mesmo tempo. Digamos, portanto, que na duração, considerada como uma
evolução criadora há criação perpétua de possibilidades e não apenas a
realidade."
(Henry Bergson,
"O pensamento e o Movente", M. Fontes, 2006, 15).
I. O processo civil
constitucionalizado.
A disciplina
infraconstitucional do processo civil brasileiro não significa autonomia plena na ontologia normativa.
A evolução do direito
constitucional apartou-o da ideia de o texto fundamental abrigar certas regras
meramente programáticas; abandonou a doutrina o conceito de cláusulas contidas
ou simplesmente programáticas, reservadas à pura discricionariedade de leis
infraconstitucionais, ressalvados os meros regulamentos. As omissões são
saneadas pela doutrina e pela jurisprudência subordinante do Excelso Supremo
Tribunal Federal, ao qual cabe dizer, em última instância, sobre o sentido hermenêutico
e a eficácia dos princípios, preceitos e garantias constitucionais.
A subordinação de outrora do
direito constitucional a regramentos legislativos inferiores tornava-o algo
menor, criava-se o paradoxo do predomínio sociológico do direito inferior aos
comandos do superior, por comissão ou omissão.
Interpretar as regras de
direito ordinário "em conformidade com a Constituição"
("interpretação conforme") instaurou a coerência vertical, sem sede
de aplicação subjetiva ou declaratória do sentido abstrato pela Suprema Corte.
O pano de fundo dessa
extraordinária e relevante função do Supremo Tribunal Federal assentou seu
fundamento no imperativo da densidade da Constituição, não mais uma pomposa e
anódina carta de princípios teoréticos, apartada da vida real das pessoas, a
tecer figuras em brumas jurídicas enevoadas.
Pontua o Mestre CÂNDIDO
RANGEL DINAMARCO, "in verbis":
Também é dos tempos modernos a ênfase no estudo
da ordem processual a partir dos princípios, garantias e disposições de diversa
natureza que sobre ela projeta a Constituição. Tam método é o que se chama
"direito processual constitucional" e leva em conta as recíprocas
influências existentes entre a Constituição e a ordem processual. De um lado, o
processo é profundamente influenciado pela Constituição e pelo generalizado
reconhecimento da necessidade de tratar seus institutos e interpretar sua lei
em consonância com o que ela estabelece. De outro, a própria Constituição
recebe influxos do processo em seu diuturno operar, no sentido de que ele
constitui instrumento eficaz para a efetivação de princípios, direitos e
garantias estabelecidos nela e amiúde transgredidos, ameaçados de transgressão
ou simplesmente questionados.
O direito processual constitucional
exterioriza-se mediante (a) a "tutela constitucional do processo",
que é o conjunto de princípios e garantias vindos da Constituição Federal
(garantias de tutela jurisdicional, exigência de motivação dos atos judiciais
etc. - infra, nn. 109-135; e (b) a chamada "jurisdição constitucional das
liberdades") composta pelo arsenal de meios predispostos pela Constituição
para maior efetividade do processo e dos direitos individuais e grupais, como o
mandado de segurança individual e o coletivo, a ação civil pública, a ação
direta de inconstitucionalidade. a exigência dos juizados especiais etc (infra,
n. 109). (cf. "Instituições", 8a. ed., vol. I, pg.
120).
Ecoando a evolução
doutrinária e jurisprudencial, nosso vigente Código de Processo Civil, em
seu art. 1º, preceitua que "O processo civil será ordenado,
disciplinado e interpretado conforme
os valores e normas fundamentais estabelecidas na Constituição da República
Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste
Código" (sem correspondência no código revogado).
II. Da definição dos atos
processuais segundo a Constituição.
É certo que nosso direito
processual determina o isolamento autossuficiente dos atos processuais, não
obstante o contexto estrutural da marcha evolutiva dos mencionados atos,
seguindo-se o norte de uma final e exauriente sentença de mérito. Solucionam-se
todas as questões postas pelas partes, prejudiciais, preliminares e de fundo,
afim de relevar-se sociologicamente o direito almejado pelos litigantes, porém
preservada a normatividade autônoma de cada ato.
No ponto, é imprescindível o
domínio do conceito de ato processual, oportuno em vista da mudança de nosso
parâmetro processual codificado, em face do princípio "tempus regit
actum" e do eventual conflito das leis no tempo.
Convicção não desafiada
firma o postulado de que atos processuais aperfeiçoados e, em especial, os
julgamentos - que são assim considerados quando proclamados-, são imunes a
qualquer cogitação de retroatividade, enquanto os ainda incompletos induzem a
uma ultratividade da lei passada.
Considerando-se que nossa
doutrina processual não se debruça verticalmente sobre a organicidade dos atos
processuais, relega-se o exame da matéria à dissecação dos atos ou negócios
jurídicos segundo os parâmetros traçados pelo código civil e sua tradicional
inteligência sobre o tema.
Na busca do esclarecimento
pragmático de eventuais dúvidas de direito intertemporal, o Colendo Superior
Tribunal de Justiça firmou a elucidação de que os recursos interpostos sob a
égide do CPC/1973, julgados e proclamados sob seus impérios, blindam-se de
qualquer impacto do CPC/2016, de vigência imediata e sem retrocessão.
Todavia e como é de trivial
sabença, uma fundamentação essencial nem sempre abarca o universo
multifacetário do mundo objetivo. Às regras fustigam as exceções. E,
permitam-nos, nos detalhes moram os maiores segredos.
III. Da exceção abordada.
Delineado o método, lancemos
a hipótese de um julgamento, iniciado e de resultado proclamado, que acolhe prejudicial de exame do mérito e
profere, consequentemente, sentença terminativa, em ação
rescisória de competência originária de Tribunal Regional, sujeita, portanto, a
recurso especial e/ou extraordinário. Por exemplo, ao acolher prejudicial de
decadência, acontecimento correntio em nossa atividade judiciária. O processo,
julgado por maioria, terminaria por sentença terminativa, sob a
regência do Código de Processo Civil de 1973.
Contudo, a instância
"ad quem" acolhe recurso do vencido e afasta a prejudicial de
decadência. O processo volta ao foro originário para emissão de novo acórdão,
já sobre o mérito, também julgado sem unanimidade. Outrossim, sob a vigência do
Código de Processo Civil de 2016, ingressado em vigência no interregno de
processamento do recurso.
Sabe-se que o novo Código
inovou, extinguiu o recurso de embargos infringentes e, compensatoriamente,
criou a denominada "técnica de julgamento ampliado": são convocados
novos julgadores para compor o "quórum", em número suficiente para,
eventualmente, alterar a decisão.
"Quid juris"?
Trataram-se de dois
julgamentos, motivo pelo qual nenhuma questão de aplicação do
direito intertemporal incomodaria nossa consciência? Ou de um único julgamento, desdobrado
em duas fases? Se for esta a cogitação correta, o conflito estaria instaurado,
mas, em nosso modesto pensar, induvidosamente se aplica a lei revogada, que
presidiu a primeira parte.
É no ponto que nos socorre o
direito constitucional, por meio de seu princípio medular da isonomia de tratamento das partes. Na
decisão que acolheu a prefacial de decadência, ainda que majoritária, não se
buscou, por inexistente, o procedimento desdobrado. A parte vencedora obteve o
resultado sem ampliação do "quórum". Se, por ocasião do segundo ponto
recursal, também por maioria, exigir-se a ampliação do colegiado, obviamente
estaremos a tratar desigualmente as partes, ao arrepio do art. 5º, inciso I, da
CF.
É a isonomia, que se
sobrepunha à liberdade e à propriedade entre os gregos - a
"isegoria". E nos força a considerar ambos as cenas de um único ato
disciplinadas pela lei vigente ao tempo da interposição do recurso e da
proclamação de seu primeiro resultado. Nesse quadro, o segundo pronunciamento
do Tribunal não está sujeito ao alargamento do colegiado, que não foi imposto
ao litígio por ocasião do acolhimento de decadência.
Se Bergson nos auxilia,
tratou-se de um "rearranjo do preexistente", não de uma "nova
realidade".
Amadeu
Garrido de Paula - Advogado, sócio do Escritório
Garrido de Paula Advogados.
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