Geneticista
explica conduta ultrapassada e enfatiza que animais não querem ser os
"líderes da matilha"Imagem de GemmaRay23 por Pixabay
Frequentemente, as
pessoas escutam recomendações de que é preciso ter atitudes firmes na educação
dos cães, para que entendam que os humanos são os "líderes
da matilha". Por isso, é comum incorporarmos a ideia de
que os cachorros, de forma arquitetada, andam na nossa frente, ao saírem na
rua, ou têm comportamentos agressivos e de monta – tudo para nos “dominarem” –,
e que, por isso, precisamos falar alto, brigar e até agredi-los. Será que estes
conceitos estão corretos e devem ser seguidos?
Camilli Chamone, geneticista, consultora
em bem-estar e comportamento canino e criadora da metodologia
neuro compatível de educação para cães no Brasil,
assegura que esta é uma conduta ultrapassada. Ela lembra que a origem desse
entendimento vem de 1970, com a Teoria da Dominância, criada pelo biólogo
Lucyan David Mech e retratada na obra "The Wolf".
Ela se referia
ao comportamento de lobos, por meio de observações do cientista. Mech afirmava
que as famílias desses animais eram lideradas por lobos fortes e dominantes
(denominados alfas), enquanto, os submissos (denominados ômega) os obedeciam.
Os alfas, portanto, exerciam controle e ditavam as decisões sobre os outros
membros do grupo.
"Esta
teoria foi transposta para a relação humano-cão e rapidamente propagada,
inclusive por profissionais que trabalham com comportamento canino",
lamenta Chamone.
Porém, em 2005,
Mech veio, a público, desmenti-la. Com o progresso das pesquisas, foi comprovado que a
Teoria da Dominância não tem embasamento científico – e mais
especificamente com o avanço da neurociência comportamental,
a partir do século XXI. Esta ciência estuda o funcionamento do cérebro –
que, por sua vez, recebe informações e influências internas e externas,
permitindo o desenvolvimento de comportamentos variados nos indivíduos, a
depender do momento e circunstâncias.
"Entendemos
o erro de Mech em 1970, pois a neurociência ainda é muito jovem – e pesquisas
referentes ao cérebro de animais, mais ainda. Um estudo que conta muito sobre o cérebro dos cães é de 2017,
apenas cinco anos atrás! Mas hoje, em 2023, é preciso trazer conhecimento para
casa e mudar a forma de lidar com espécies diferentes da nossa, como os nossos
peludos domésticos", registra a geneticista.
Assim, ao
detalhar o funcionamento do cérebro, a neurociência mostra que os cães não têm
habilidades de criar suposições sobre o que o outro está sentindo ou pensando
e, a partir daí, bolar planos maquiavélicos. Isso é chamado de
Teoria da Mente. "Apenas os primatas ditos superiores, como gorilas,
chimpanzés e, inclusive humanos, têm essa competência cognitiva. Na prática,
isso significa que somente eles são capazes de reconhecer que o outro pensa e
sente. Nenhum outro animal, nem o cachorro, tem desenvolvimento neurológico
suficiente para isso", explica Chamone.
E mais: os cães
(independentemente do tamanho ou raça) têm o desenvolvimento cognitivo e emocional
equivalente ao de uma criança de dois anos; ou seja, eles não têm um cérebro
desenvolvido, ao ponto de quererem nos dominar, o que invalida,
de vez, a Teoria da Dominância.
"Até por
conta desse desenvolvimento cognitivo limitado, eles não interpretam o mundo
como nós – por exemplo, ao se olharem no espelho ou verem cenas na televisão,
não dão conta de associar e entender que são apenas imagens refletidas".
Comportamentos
à luz da neurociência
Mas, então, o
que significam os comportamentos mencionados acima – de querer andar na frente
do dono, de se comportar de forma agressiva ou de fazer monta nos humanos, como
se quisesse cruzar?
Chamone
esclarece: "o andar na frente do dono só mostra que esse animal tem
hábitos exploratórios, algo totalmente natural de sua natureza. É comum e
saudável querer farejar, cavar, e explorar o ambiente do passeio". Dessa
forma, cães podem andar à frente do tutor, ao lado ou atrás – não há relevância
alguma nisso.
Já os
comportamentos agressivos e de monta requerem mais cuidado e atenção – e não
porque os cães estão querendo nos dominar, mas sim porque, provavelmente, estão
em sofrimento.
"A
agressividade se torna uma necessidade quando o cachorro se sente em um
ambiente ameaçador, no qual a única forma de se defender é mordendo. Se chegou
a este ponto, o dono precisa, urgentemente, buscar ajuda profissional, pois
além de ter um cãozinho em extremo estresse e sofrimento, pode estar colocando
a família em risco", alerta.
Por fim, a monta compulsiva, fora do contexto sexual (macho diante de fêmea no cio) é chamada de estereotipia comportamental – ou seja, uma forma que o cão encontra para aliviar a ansiedade que está sentindo. "O mesmo podemos dizer para outros padrões compulsivos, como lambeduras intermináveis, excesso de latidos e comer o seu próprio cocô", exemplifica.
Assim, entender
o comportamento canino à luz da neurociência nos traz conhecimento e sabedoria.
"Não faz sentido submetermos nossos peludos a atitudes autoritárias para
que nos obedeçam e nos respeitem, sem qualquer embasamento em ciência. Cabe a
nós, humanos, usarmos o nosso 'super cérebro' evoluído para entendermos a
espécie diferente e encantadora que trouxemos para a nossa casa, garantindo o
bem-estar e a tranquilidade de todos da família", finaliza a geneticista.