A eutanásia consiste em se provocar a morte de uma pessoa antes do
previsto pela evolução natural da doença, um ato misericordioso devido ao
sofrimento advindo de uma doença incurável. A forma de causar a morte do
paciente pode se dar de maneira ativa ou passiva, pode se dar de um jeito
direto ou indireto, ou como um ato voluntário ou não voluntário do paciente.
Na
Espanha, houve recentemente a aprovação para a eutanásia, incluindo também
autorização para o suicídio medicamente assistido. Pela lei espanhola, qualquer
pessoa paralisada por uma doença "grave e incurável", ou que sofra
dores crônicas incapacitantes, pode pedir ajuda médica para morrer e evitar um
"sofrimento intolerável". A nova legislação também permite o suicídio
medicamente assistido, ou seja, quando o paciente toma uma dose de um produto
prescrito para levar à sua morte. A eutanásia também é descriminalizada na
Holanda, Bélgica e Luxemburgo.
A nova
lei da Espanha, entretanto, impõe algumas condições estritas. São elas: o
cidadão deve estar capaz e consciente no momento de fazer o pedido; este pedido
deve ser feito por escrito e sem pressão externa e esta solicitação deve ser
renovada 15 dias depois. Pelo texto sancionado o médico poderá rejeitar o
pedido, se considerar que os critérios não estão sendo cumpridos, ou fazer
valer sua objeção de consciência. O pedido terá que ser aprovado por um outro
médico e receber a aprovação de uma comissão de avaliação. Na verdade, bem
parecido com a legislação dos poucos países que a permitem.
A
aprovação do procedimento na Europa nos leva a refletir sobre o tema, que,
aliás, envolve aspectos do ponto de vista jurídico, social, cultural, religioso
e antropológico. Além da eutanásia, existem também a distanásia e a
ortotanásia, no campo da Bioética e do Biodireito. A distanásia é o adiamento
da morte e acontece quando, por exemplo, o médico ministra ao paciente todas as
drogas disponíveis, bem como utiliza toda a tecnologia disponível para
prolongar a vida e/ou atrasar a morte, muitas vezes lhe propiciando sofrimentos
desnecessários, chamada de obstinação terapêutica. Ortotanásia é um meio termo
entre a eutanásia e distanásia, também conhecida por morte natural com o mínimo
de sofrimento. Dá-se quando, por exemplo, o médico trata o paciente a fim de
evitar-lhe sofrimentos mas, em casos terminais, não utiliza artifícios
tecnológicos para atrasar a morte do paciente.
Nem todas
essas práticas são expressamente aceitas, proibidas ou mesmo regulamentadas
pelos órgãos competentes no Brasil. Na verdade, discute-se até onde vai a
autonomia do paciente para decidir como será sua morte. Há algumas
determinações sobre o assunto e, visando suprir, ainda que parcialmente, essa
lacuna, foi que o CFM editou as Resoluções nº 1805/06 e 1995/2012. A resolução
nº 1805/06, que versa sobre a ortotanásia, dispõe: “Art. 1º É permitido ao
médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida
do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a
vontade da pessoa ou de seu representante legal.”
Todavia,
essa resolução foi objeto de questionamento pelo Ministério Público Federal,
que propôs Ação Civil Pública visando suspender seus efeitos, sob o argumento
de que o referido ato normativo feriria o ordenamento jurídico pátrio.
Inicialmente, o juiz responsável pelo caso acolheu a tese da promotoria e
suspendeu, temporariamente, os efeitos da resolução. No entanto, ao final da
ação, o juiz reviu sua posição anterior e julgou válida a resolução do CFM que
até hoje permanece vigente. Portanto, o médico, autorizado pelo paciente ou seu
responsável legal, pode limitar ou suspender tratamentos exagerados e
desnecessários que prolonguem a vida do doente em fase terminal de enfermidades
graves e incuráveis.
Já a resolução nº 1995/2012 regulamentou o denominado testamento vital,
isto é, uma diretiva antecipada de vontade consistente no registro do desejo do
paciente em um documento, que dá suporte legal e ético para o cumprimento da
orientação, seja no sentido de manter, seja no sentido de dispensar eventual
tratamento inócuo. Não obstante ao teor das citadas resoluções, o Código de
Ética Médica também aborda o tema é dispõe que é vedado ao médico “utilizar, em
qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a
pedido deste ou de seu responsável legal”.
Sobre as chamadas diretivas antecipadas, há um Projeto de Lei de autoria
do ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, com a exposição clara dos
requisitos a ser em observados, em especial quanto ao respeito à autonomia do
paciente. Destaca-se o seguinte trecho do Art. 10: É garantido a toda pessoa
capaz, nos termos desta lei, o direito de planejar, de modo antecipado, suas
decisões ante possíveis hipóteses do que pode lhe ocorrer no decurso de uma
enfermidade, mediante instruções prévias a respeito de condutas terapêuticas no
momento de privação da manifestação da vontade, deixando expressa suas escolhas
sobre consentimento ou recusa em relação a testes diagnósticos, terapias,
procedimentos, medicamentos, tratamentos e outras condutas terapêuticas.
De outra
vertente, atualmente nossas leis não cuidam dessas situações de maneira clara e
objetiva. Em uma primeira visão, somente a eutanásia configuraria crime. No
entanto, não há uma previsão específica para essa conduta, de modo que
incidiria a regra geral do artigo 121 do Código Penal com uma causa de
diminuição da pena, prevista em seu § 1º: “Se o agente comete o crime impelido
por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta
emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a
pena de um sexto a um terço.”
Em
síntese, aquele que, visando cessar o sofrimento de determinado paciente cujo
estado de saúde é irreversível (relevante valor moral), responderia pelo crime
de homicídio, mas com uma pena reduzida.
A
aceleração de casos da Covid-19 no Brasil provocou um novo fenômeno nos
hospitais: a mistanásia aguda. Definida como uma modalidade de término de vida,
ocorre quando um indivíduo vulnerável socialmente é acometido de uma morte
prematura, miserável e evitável. É possível caracterizar essa condição como o
oposto da eutanásia. Esse quadro foi observado na segunda onda da epidemia pela
falta de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e de vagas de enfermarias
no atendimento aos doentes com coronavírus em diferentes regiões do Brasil. E
como alguns hospitais ficaram sem leitos, as equipes e profissionais da área da
saúde foram obrigadas a escolher, de certa forma, quem deveria morrer ou não.
Na
verdade, não é novidade no SUS que pacientes precisem muitas vezes serem
escolhidos, segundo sua gravidade e chance de sobrevivência, para ocupação de
um leito. O fenômeno da mistanásia não representa um abandono de paciente, mas
sim uma consequência do colapso do sistema. A escolha não exime o profissional
de oferecer ao paciente preterido de todos os cuidados no leito de enfermaria, mas
uma chance de sobrevivência pode ser perdida pela ausência de cuidados
intensivos. É uma decisão drástica criada pela completa saturação dos recursos
da UTI no país e do "gargalo" no atendimento à população. E, na
maioria dos casos, apesar de parecer cruel, a análise do atendimento é feita
não só pela ordem na fila, mas também pela chance de sobrevivência.
Normalmente,
a mistanásia atinge indivíduos excluídos do seio social que dependem das
políticas públicas de saúde na garantia de sua dignidade. Já a eutanásia abarca
pacientes de todas as classes sociais. À exceção da mistanásia, o que se
discute é a autonomia do paciente. Importante frisar que a República Federativa
do Brasil tem por fundamento a dignidade da pessoa humana. Disso conclui-se que
todo ser humano tem direito a ter uma vida digna, inclusive no momento de seu
término, ou seja, na morte. Em pacientes terminais cuja doença esteja em
situação irreversível, a dignidade consiste no controle da dor e de outros
sintomas indesejáveis e desconfortáveis ao paciente.
Dessa
forma, os cuidados visando o bem-estar do ser humano passam a ser a prioridade,
e não a luta contra algo que, inevitavelmente, não se tem mais condições de
combater – no caso, a doença e o fim da vida. No entanto, vale ressaltar, a decisão
final sobre manter ou não um tratamento quando o paciente já não reúne mais
condições de reversão em seu quadro clínico, deve ficar sempre nas mãos do
próprio paciente e, somente na sua impossibilidade de decidir, caberá à família
essa importante decisão.
Não seria
o caso de ampliarmos a discussão sobre morte digna nosso país, afastando-se o
estigma do tema, já que a morte é condição natural? Sim, o tema é delicado, mas
dessa discussão necessária muito se pode criar até políticas para se viver
melhor para morrer com dignidade e escolhas.
Sandra
Franco - consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde,
doutoranda em Saúde Pública, MBA/FGV em Gestão de Serviços em Saúde, fundadora
e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos
Campos (SP) entre 2013 e 2018, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados
e diretora jurídica da ABCIS.