Crise, sob o aspecto etimológico com origem no grego,
significa “ação ou faculdade de distinguir decisão/ momento difícil”, que nos
remete a algo momentâneo e não permanente, passageiro até o instante da decisão
ou exercício da faculdade. No mesmo entendimento desta significação os
orientais, através dos ideogramas (kanji), também trazem a ideia de
temporalidade na interpretação da crise (kiki). Portanto não há “crise
hídrica”, o que há é um colapso pelo fato do esgotamento, em todos os aspectos,
da água. Diferente da crise o colapso é previsível.
Não “é” uma realidade, “sempre foi”. Em 1960, durante a
implantação do formato atual do sistema Cantareira (na época Sistema Juqueri),
havia um alerta nos estudos mencionando que a capacidade de abastecimento se
esgotaria no ano de 2000 para a região do Grande ABC. Em 2004 houve a outorga
de parte do sistema Cantareira (reservatórios: Jaguari-Jacareí, Cachoeira e
Atibainha) para a SABESP (Companhia de Saneamento do Estado de São Paulo) e ao
Consórcio PCJ (Consórcio das Bacias dos Rios, Piracicaba, Capivari e Jundiaí)
no qual se comprometiam a criar soluções para diminuição da dependência do
Sistema Cantareira diante do crescimento populacional do Estado de São Paulo e
principalmente da Região Metropolitana da Capital.
Em 2009, um detalhado estudo realizado pela Universidade
de São Paulo (USP), e enviado ao Governo do Estado de São Paulo, alertava para
o menor volume útil registrado (15,7%) desde 1974 e propôs diversas medidas
para “que evitem o colapso de abastecimento das regiões envolvidas e
minimizem a influência política nas decisões”. Nenhuma das medidas foi
adotada, as condições para outorga não foram exigidas e o antigo estudo
mencionado se mostrou correto quanto a previsão. Ou seja, atingimos esta
realidade não por falta de alertas e até mesmo de soluções, mas por inércia na
gestão dos interesses do Estado.
Na contramão da prevenção, o Governo do Estado de São
Paulo em vez de fazer pesados investimentos na manutenção da rede de
abastecimento, fiscalização e reflorestamento das regiões de mananciais e
constantes campanhas de conscientização do uso da água; preferiu negociar o seu
patrimônio (47,7%) na Bolsa de Valores de Nova Iorque (New York Stock Exchange
– NYSE), através de ADR nível III (American Depository Receipts) sob sigla SBS,
e na Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F Bovespa) sob a sigla SBSP3ON (Ação
Ordinária) em 2004. Desde então distribuiu R$ 4,372 bilhões em dividendos e em
nenhum desses anos respeitou o payout máximo de 25%, determinado pelo
estatuto da Sabesp.
Ao longo desses anos os valores das ações da Sabesp na
NYSE foi na ordem de 601% e na Bovespa de 427%. Ao mesmo tempo os investimentos
na Sabesp quase quintuplicaram (acumulado de R$17,478 bilhões). Com excelente
rentabilidade no mercado e investimentos na casa dos bilhões, como a gestão da
água não melhorou? A explicação é que no momento em que entra no jogo das
Bolsas de Valores o que importa é o retorno financeiro. Para que isso aconteça
é necessário “melhorar os números”, substituição de redes de abastecimento com
mais de 30 anos, funcionários e menos dependência do sistema Cantareira não estão
nesses “números”.
O investimento da Sabesp voltou-se para o aumento de
ligações da rede de abastecimento e captação no tratamento de esgoto porque é a
forma mais rentável quando trabalhamos com “números”, pois ambos os serviços
geram tarifas e, consequentemente, isso eleva os valores nos demonstrativos de
resultados da Sabesp.
O Governador, no entanto, insiste em dizer que não há
racionamento, mesmo diante do estado de calamidade em cidades do interior
paulista (principalmente Itu que ficou quase 3 meses sem água) e nos bairros
periféricos de São Paulo (desde agosto de 2014), declarou que há “reduções de
fornecimento e diminuição da pressão” e culpa a Agência Nacional de Águas (ANA)
pela determinação na “redução do fornecimento”.Diversos consumidores entraram
com ações na Justiça para proibir cortes e/ou aumentos nas contas (em razão das
multas), alegando que enquanto não existir a declaração oficial de
racionamento, não pode suspender o serviço.
Enquanto alguns bairros ficam dias sem água, outros ainda
não sabem o que é ficar quase cinco dias sem. Esta distinta realidade também
tem reflexos em quem detém um maior poder econômico. Recentemente foi publicada
a lista de quase 500 estabelecimentos que se beneficiam da relação: quanto
maior o consumo, menor a tarifa paga pela água. Tais empresas têm esse
privilégio através de contratos firmados com a própria Sabesp que estabelecem
uma tabela de cobrança diferenciada (prática também comum com distribuidoras de
energia elétrica). Como nas ações negociadas nas Bolsas de Valores que
beneficiam os que detêm o capital financeiro, na realidade do racionamento só
não é prejudicado quem possui um poder econômico maior. O racionamento tem CEP
no Estado de São Paulo.
Os diversos veículos da mídia e o próprio Governo do
Estado culpam São Pedro pelo colapso hídrico. Justificam que em todo o mundo há
lugares com situação de seca. Esquecem que a teoria do conhecimento evoluiu
consideravelmente nesses últimos 200 anos de história, e que clima e outros
fatores naturais conseguem ser previstos e/ou explicados através de
demonstrações técnicas. Para os mais céticos, esses mesmos dois personagens
culpam os cidadãos pela falta da água. Novamente não se atentam que o consumo
residencial no Brasil equivale somente a 9% (dos quais quase 30% são perdidos
por vazamentos e ligações clandestinas) enquanto a população rural consome 1%,
as indústrias 7%, a atividade pecuária 11% e a agricultura 72%, de todo o
fornecimento hídrico.
Por mais que todos os residentes economizassem 50% de
água, os outros 95,5% continuariam consumindo como se não fossem os culpados
pelo excesso de uso. Obviamente é importante o uso racional da água (banhos
curtos, manutenção dos encanamentos residenciais, e demais ações que evitem o
desperdício), como também é extremamente importante a diminuição das perdas no
fornecimento (quem dera chegássemos aos 11% como o Japão), mas se não existir
uma ação conjunta com gestão e planejamento, o esforço dos residentes será em
vão. Alternativas de manejo na matriz hídrica e medidas que visam diminuir o
uso de água na agricultura seria uma alternativa viável, como propõe a USP em
estudo premiado.
A preservação das áreas de mananciais e nascentes é
imprescindível para a gestão ambiental. Mesmo com o fevereiro mais chuvoso em
nove anos, o nível do Cantareira não subiu como o desejado (e se subiu foi em
razão da diminuição da captação da água e dos fechamentos temporários de
diversos registros na cidade) e luta dia a dia contra o “efeito esponja”. Para
agravar, após a aprovação do novo Código Florestal em 2012, há uma maior área
legal em que permite a ocupação da região de mananciais, represas e margens de
rios.. Todos sabemos dos malefícios da urbanização das áreas de águas (a
Billings é um exemplo disso). Na época houve uma massacrante vitória na
aprovação (e se fosse hoje seria maior ainda com a nova composição do Congresso
Nacional), vale a pena ler o único voto em apartado contra.
A água é necessária para garantir uma dignidade à vida.
Diversas regiões e países vivem com a falta de água há séculos, e nem por isso
deixaram de existir e produzir. Mas para que isso acontecesse e não extinguisse
os locais, foi necessária gestão e planejamento (em áreas desérticas, áridas ou
que não estão próximas á fontes de água doce). A água não é uma fonte infinita,
e precisamos acabar com o “mito da infinidade” da mesma no Brasil. Perceber que
o fenômeno é complexo e internacional. O Estado de São Paulo não está sozinho
nisso, depende de outras regiões do Brasil (como a Amazônia, por exemplo). O
modelo do consumismo desenfreado (a quantidade de comida desperdiçada no mundo
é suficiente para acabar com a fome) não é sustentável. A produção supera em
muitas vezes o nível da necessidade. Há um grande excedente em tudo no mundo.
Neste ritmo de poluição, destruição, produção estaremos destinados não só á um
colapso regional, mas mundial da água.
Pedro Henrique Teruji J Minamidani - professor do Curso
de Direito do Centro Universitário Anhanguera de Santo André – UNIA, graduado,
especialista e mestre em Direito pela PUC-SP e bacharelando em filosofia pela
FFLCH-USP.