Estudo conduzido na Faculdade
de Medicina do ABC envolveu 242 casais residentes na Grande São Paulo; homens
exibiram maior nível de conflito trabalho-família, enquanto as mulheres foram
mais afetadas pelo estresseForam avaliados casais que estavam em tratamento
de reprodução assistida no Instituto Ideia Fértil, vinculado à FM-ABC, na Grande São Paulo
(imagem: RWJMS IVF Laboratory/Wikimedia Commons)
A infertilidade é um problema
que afeta de 8% a 12% dos casais em idade reprodutiva no mundo todo – para alguns
deles, o problema interrompe um projeto de vida, que é o desejo de ter filhos e
de construir uma família. Os avanços tecnológicos e da medicina tornaram
possível a realização de tratamentos de reprodução assistida, mas eles podem
ser física e psicologicamente exaustivos para os casais envolvidos,
especialmente por causa das expectativas com resultados que talvez não sejam
alcançados.
Os impactos emocionais do
tratamento são bem estabelecidos na literatura científica. A frustração com
resultados negativos impacta o bem-estar psicológico e social do casal, que
pode desenvolver sintomas como depressão, ansiedade, raiva e estresse, piorando
a qualidade de vida. Agora, um estudo realizado na Faculdade de Medicina do ABC
(FM-ABC) com apoio da FAPESP investigou pela primeira vez os conflitos trabalho-família nesses pacientes,
que podem estar associados, por exemplo, com ausências frequentes motivadas por
consultas médicas ou exames.
Os resultados, divulgados na revista Psychology, Health & Medicine, indicam
que o nível de conflito trabalho-família é maior entre os homens, enquanto o
estresse afeta mais as mulheres.
Ao todo, foram avaliados 242
casais que estavam em tratamento de reprodução assistida no Instituto Ideia
Fértil, vinculado à FM-ABC, na Grande São Paulo. Entre os participantes, a
mediana de idade era de 37 anos; 60% eram mulheres; 67% tinham concluído a
universidade; 37% estavam casados há mais de dez anos, 26% estavam casados
entre cinco e dez anos e 37% estavam casados há cinco anos ou menos.
Na maioria das vezes os
tratamentos de reprodução assistida demandam tempo e alto investimento
financeiro, que às vezes são fatores estressantes para os pacientes que
trabalham. Contudo, faltam na literatura científica dados sobre o impacto desse
procedimento nos conflitos trabalho-família.
“Pacientes inférteis em
tratamento podem enfrentar perda de emprego devido a ausências frequentes para
consultas médicas e exames. É frequente que a mulher peça o atestado médico sem
o logotipo da clínica, por exemplo, para que o empregador não saiba que ela
está tentando engravidar”, conta Victor Zaia, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da FM-ABC
e autor responsável pelo estudo.
Além disso, esses pacientes
também podem experimentar redução de produtividade, dificuldades de
concentração, desafios no gerenciamento de efeitos colaterais de medicamentos e
dificuldades com gerenciamento de tempo. “O conflito trabalho-família surge
quando esses indivíduos vivenciam tensão ao tentar cumprir responsabilidades
profissionais e pessoais. Muitos enfrentam estresse, fadiga, exaustão
emocional, distúrbios do sono, insatisfações, problemas conjugais, diminuição
da produtividade. Consequentemente, isso pode resultar em conflitos entre essas
funções, com repercussões físicas e psicológicas.”
Escalas de
avaliação
Para chegar aos resultados, os
pesquisadores aplicaram questionários on-line para avaliar os casais. Eles
responderam a questões de quatro escalas validadas internacionalmente: Escala
de Estresse Relacionado à Infertilidade-Brasil (IRSS); Escala de Resiliência
Connor-Davidson 10 (CD-RISC 10); Escala de Suporte Social Percebido (PSSS) e Escala
de Conflito Trabalho-Família.
Na Escala de Estresse
Relacionado à Infertilidade, os voluntários responderam a 12 questões
envolvendo o estresse interpessoal (sobre como situações da infertilidade
atrapalhariam o cotidiano dessa pessoa com amigos, família, cônjuge) e
perguntas sobre estresse intrapessoal (sobre quanto o problema da infertilidade
interfere no seu bem-estar físico e emocional).
Na Escala de Resiliência, os
participantes responderam a dez questões sobre sua capacidade de se adaptar às
mudanças que acontecem na vida; sobre superar as dificuldades depois de doenças
ou outros problemas; sobre conseguir pensar com clareza quando está sob
pressão, entre outras.
O diferencial nesse caso,
explica Zaia, é que a pesquisa focou em algo que estava acontecendo naquele
momento – que era o tratamento de reprodução assistida –, enquanto muitas
pesquisas sobre resiliência perguntam sobre algo que já aconteceu no passado,
buscando a memória. “Em nosso estudo, as pessoas estavam iniciando o tratamento
de reprodução. Então o impacto, a situação de risco, estava sendo
vivido no agora.”
A terceira ferramenta usada na
pesquisa foi a Escala de Suporte Social Percebido que, como o próprio nome diz,
busca entender em 29 perguntas se o participante recebe e percebe algum tipo de
apoio emocional ou prático do cônjuge, da família, dos amigos.
Por último, os pesquisadores
aplicaram a Escala de Conflito Trabalho-Família – a mais importante dentro
do recorte que eles buscavam estudar. Ela tem como objetivo avaliar as interferências
entre os ambientes familiar e de trabalho dentro de duas subescalas:
Interferência do Trabalho na Família e Interferência da Família no Trabalho.
Nas análises, os participantes
do sexo masculino exibiram maior resiliência e menores níveis de estresse,
tanto intrapessoal quanto interpessoal, em comparação com as mulheres que
estavam em tratamento de infertilidade. No entanto, pacientes do sexo masculino
relataram níveis mais altos de interferência do trabalho na família. Além
disso, houve diferenças significativas de conflito trabalho-família com base na
renda do casal: aqueles com rendas mais altas relataram mais interferências.
Por outro lado, o estudo
apontou que as mulheres em tratamento de infertilidade apresentam níveis mais
baixos de resiliência e níveis mais altos de estresse – o que pode ser
explicado, segundo os autores, pelas expectativas sociais em torno da
maternidade, que é considerada um papel central para as mulheres. Os
pesquisadores também encontraram correlações significativas entre resiliência e
suporte emocional; estresse intrapessoal; e estresse interpessoal.
“O estresse sozinho não explica
o conflito trabalho-família. Mas concluímos que, se a pessoa tiver mais
estresse, pouco suporte social, menos resiliência, muito provavelmente ela terá
maiores níveis de conflitos. E se a pessoa não conseguir gerenciar esses
conflitos, ela provavelmente terá mais estresse, levando a uma espécie de
círculo vicioso”, explica Zaia.
Do ponto de vista da prática
clínica, diz Zaia, esses resultados podem orientar os profissionais de saúde a
trabalhar com os casais na busca do fortalecimento das estratégias para
melhorar e fortalecer os aspectos de resiliência e de suporte emocional. “Todas
as questões são importantes. Esse casal está sofrendo. Precisamos melhorar a
comunicação e o suporte, além de trabalhar estratégias de manejo do estresse de
modo que a adaptação ao tratamento possa ser melhor”, explicou o pesquisador.
De acordo com Zaia, existem
duas maneiras de tentar driblar esses conflitos: a resiliência (que é a
capacidade de adaptar-se às mudanças significativas na vida) e o suporte
social. A resiliência é considerada um fator de proteção porque ela pode
moderar a relação entre o estresse e a qualidade de vida, diminuindo os
possíveis efeitos adversos do estresse relacionado à infertilidade. E o suporte
social, por sua vez, ajuda porque estar cercado por indivíduos que oferecem
apoio emocional e prático pode reduzir a carga afetiva da infertilidade e possivelmente
aliviar os desafios do tratamento.
Reprodução
assistida
A infertilidade é definida como
a incapacidade de engravidar após pelo menos um ano de relações sexuais
regulares desprotegidas. Os tratamentos de reprodução assistida existem, mas
demandam tempo e alto investimento financeiro. Há poucos serviços no Sistema
Único de Saúde (SUS) que oferecem esse tratamento – e eles são muito
restritivos (impõem limites de idade, por exemplo).
Relatório do Fundo de População
das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil publicado em março deste ano aponta que o Brasil possui 192 clínicas de
reprodução assistida, sendo apenas 11 públicas (6%). O custo de um ciclo
completo de fertilização in vitro variava, em 2023, entre R$ 15 mil e R$ 100
mil, dependendo do número de tentativas, do procedimento usado e da localidade
da clínica. A clínica envolvida no estudo é uma Organização Social e os
pacientes atendidos no local pagam somente pelo custo dos tratamentos, que
partem de R$ 3 mil.
O artigo Relationships
between work-family conflict, infertility-related stress, resilience and social
support in patients undergoing infertility treatment pode ser lido
em: www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13548506.2024.2418437.
Fernanda Bassette
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/pesquisa-avalia-como-tratamentos-de-infertilidade-podem-impactar-as-relacoes-familiares-e-de-trabalho/53387
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