Escassez e abundância: o ciclo vicioso da água nos instiga ao desafio de renascermos como civilização antes de nos extinguirmos como espécie
Na última semana, estive na Conferência da ONU
sobre a água, em Nova Iorque, encontro que se propôs a decidir quais ações
conjuntas entre países serão necessárias para o atingimento das metas
internacionais acordadas sobre o tema, incluindo os objetivos presentes na
Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
O resultado mais comentado da Conferência foi o
lançamento da Agenda de Ação da Água, que representa o comprometimento
voluntário de todos os níveis, governos, instituições e comunidades.
Para além do que foi discutido durante os dias do
evento e do lançamento da Agenda, a Conferência, que não acontecia há quase 50
anos – a última foi em 1977, em Mar del Plata, na Argentina – me inspirou à
construção do raciocínio a seguir, com o qual abri um debate com um grupo
seleto de especialistas em questões hídricas, durante evento promovido pela
TyQuant, em São Paulo, sobre como enfrentar o ciclo vicioso da água: escassez e
abundância.
A sociedade civil vê a água como direito, os povos
originários como sagrada, as empresas como mercadoria, o agronegócio como
insumo, os governos como obrigação e risco político, a academia como uma
possível ciência. E a água, candidamente, é antes de tudo inefável. É
a essência da vida. É, sobretudo, a base de um ecossistema pleno, saudável e de
uma sociedade sustentável. Por conseguinte, o tema da água só pode ser
tratado de forma holística, integrado e planetário.
A água está para o debate multilateral
hoje como estava o carbono na década de 2000. Podemos considerar o
protocolo de Kioto como a primeira iniciativa
internacional. Mas, foi em Copenhague, em
2009, que o compromisso sério de engajamento dos países para a redução do
carbono foi tentado e, finalmente, em 2015, o mundo amadureceu em
torno dos NDC e dos ODS.
A diferença é que os gases de efeito
estufa são causadores do aquecimento global e a crise hídrica é uma
das suas principais consequências. Por mais que se fale em mitigação e
adaptação, a mudança dos regimes de chuva, a acidificação dos oceanos, a
elevação do nível dos mares, a contaminação dos rios e lagos com pesticidas, a
poluição dos corpos d’água com microplásticos e muitos outros
fenômenos a que acometemos os recursos hídricos não serão resolvidos
nem no tempo, nem através dos mesmos mecanismos utilizados pelo carbono.
Mais do que o carbono, passível de
regulação em suas emissões nacionais, a água desafia os conceitos
estruturais de soberania. Daí o paradoxo: como essência à vida, é um bem comum
cuja dinâmica não obedece a fronteiras nem a métricas
convencionais. Necessitamos reconhecer a urgência de nos
dobrarmos ao imperativo de uma economia
regenerativa, alicerçada em Soluções Baseadas na Natureza (as SBNs),
única capaz de restaurar o equilíbrio ecossistêmico para que a água, na
sua escassez ou abundância, não se torne mais um terror a assolar a
humanidade. Imaginem, a essência da vida tornando-se a sua principal ameaça.
Como uma das mais letais consequências da crise
climática, temos que assumir este como um desafio para diversas
gerações a nos convocar, desde já, a acelerar processos
regenerativos, ao mesmo tempo em que trabalhamos na mitigação das causas
do aquecimento global.
O melhor da ciência, do conhecimento ancestral e da
biomimética serão necessários para impulsionar a regeneração. Temos
que, humildemente, reconhecer que apesar das assombrosas conquistas da
engenharia pesada não será ela isoladamente que dará as respostas. Até porque
estamos falando em um direito
sagrado à vida, em regeneração de ecossistemas, em
reflorestamento em grande escala, em resgate da diversidade
biológica, campos estes em que, comprovadamente, as soluções cinzas
não têm contribuído, a não ser marginalmente.
Podemos concordar ou não, mas a verdade é que antes
de nos extinguirmos como espécie, temos a oportunidade de renascermos
como civilização, de nos reconectar com a vida e nossas origens, resgatar a
sabedoria ancestral que tanto renegamos, rever nossos valores e o sentido
existencial de nossa humanidade. Não podemos jamais desmerecer nossa
evolução, mas necessitamos da humildade de entendermos que, ao
eleger a natureza como algo a ser conquistada, perdemos a oportunidade de
aprender com ela. Ao saquearmos a terra, a vida, as florestas para forçarmos
escalas de produção, perdemos a oportunidade de compreender a generosidade, a
abundância deste planeta.
É claro que a tecnologia de ponta será necessária,
assim como a nanotecnologia, a microbiologia, a genética e tantos outros
conhecimentos de ponta. No entanto, o que faz a expertise não é a
excelência da ferramenta, mas é a qualidade do artesão. Sem uma total mudança
de mentalidade e uma reconciliação profunda com a natureza livre e
selvagem, não daremos as respostas necessárias.
Se nossa tecnologia apenas baseada na física e nas
ciências representassem evolução, não nos encontraríamos onde estamos: de que
vale termos superado doenças, distâncias, barreiras temporais, gravidade e
outros feitos assombrosos se não conseguimos garantir os pilares e princípios
que permitem a vida no planeta? Cuidamos da fachada e do
jardim, enquanto as estruturas de nossa casa estão ruindo. O milagre da
vida está comprometido e, diante deste, nenhum feito é de fato relevante no
longo prazo.
É da vida que temos de cuidar, é da comunidade de
vida que temos de zelar. Guardiões da vida, essa é a melhor
potencialidade da espécie humana.
Synergia
https://www.synergiaconsultoria.com.br/
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