A 5ª Turma do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do RHC nº 143.169, decidiu
por anular provas digitais obtidas pela polícia em uma investigação sobre uma
organização criminosa envolvida em furtos eletrônicos, devido à quebra da
cadeia de custódia.
A decisão se deu
em razão da ausência de documentação adequada dos procedimentos adotados
durante a coleta, armazenamento e preservação das evidências digitais em
questão. Com isso, a decisão reforça a importância da observância da cadeia de
custódia para garantir a integridade e confiabilidade das provas no processo
penal, inclusive as digitais.
Conceitualmente,
o corpo de delito é entendido como o conjunto de vestígios deixados no mundo
material pela infração. O exame de corpo de delito, portanto, é aquele
realizado sob tais vestígios, visando a colheita de informações que comprovem a
materialidade, ou seja, a existência do crime.
Nesse sentido,
temos na legislação processual a cadeia de custódia, que se caracteriza pelo
conjunto de procedimentos que devem ser adotados pela polícia judiciária
visando assegurar que os vestígios não sejam corrompidos, para contribuir para
a comprovação do cometimento do delito.
Para ser válida
a cadeia de custódia, a polícia judiciária deve seguir um procedimento que seja
apto a garantir a integridade das provas, o qual deve ser devidamente
documentado – caso contrário, a prova não pode ser admitida.
Como exemplo,
pode-se citar as técnicas destinadas a se preservar uma arma de fogo encontrada
numa cena de crime, dentre diversas outras hipóteses.
É correto
afirmar que são inúmeras as técnicas adotadas para a preservação da cadeia de
custódia, mas o cerne da questão é a necessidade de se avaliar, a cada caso
concreto, se houve o cuidado necessário no acautelamento do material pela
polícia e, além disso, se esse foi suficiente a se preservar a prova desde sua
fonte – o que só pode ser aferido pela documentação dos procedimentos adotados.
No caso das
provas digitais, há um problema maior: a natureza imaterial de tais provas
dificulta – principalmente do ponto de vista defensivo – a avaliação dos
procedimentos utilizados para preservar a fiabilidade do material probatório,
pois um arquivo pode ser facilmente alterado por meio de um computador ou
celular.
Em decorrência
disso, é evidente que se faz necessário um cuidado muito maior por parte da
polícia com relação à guarda de provas digitais, pois um mero arquivo
corrompido pode desaguar em um resultado desastroso, como a condenação injusta
de um réu – seja ele culpado ou inocente.
Atualmente,
temos diversos softwares e algoritmos capazes de analisar arquivos digitais,
possibilitando averiguar se um arquivo foi alterado ou não. A título de
exemplo, cita-se o algoritmo hash, pelo qual é possível rastrear e identificar
mudanças em arquivos digitais. Dessa forma, é possível afirmar que, embora haja
dificuldades em se averiguar a veracidade de um arquivo digital, tal
possibilidade existe.
Assim, é
necessário que a polícia aja com a diligência e dedicação necessárias a
preservação de tais provas, sem se escusar de tal obrigação, pois é ônus do
Estado demonstrar que os objetos periciados foram conservados, desde que foram
colhidos, até sua apresentação no conjunto probatório, sendo impossível
presumir a veracidade da prova quando há desídia do Estado na coleta e
armazenamento da desta.
Nas palavras do
ilustre Prof. Gustavo Badaró:
"É
imprescindível que o método empregado garanta a integridade do dado digital e,
com isso, a força probandi do conteúdo probatório por ele representado.
Normalmente, é necessário fazer uma cópia ou 'espelhamento', obtendo o
bitstream da imagem do disco rígido ou suporte de memória em que o dado digital
está registrado. Além disso, por meio de um cálculo de algoritmo de hash, é
possível verificar a perfeita identidade da cópia com o arquivo original.
Com isso, de um lado, se preserva o material original e, de outro, se garante a
autenticidade e integridade do material que foi examinado pelos peritos.
Evidente que todo esse processo técnico precisa ser documentado e registrado em
todas as suas etapas. Tal exigência é uma garantia de um correto emprego das
operating procedures, especialmente por envolver um dado probatório volátil e
sujeito à mutação. [...] Realmente, a documentação da cadeia de custódia é
essencial no caso de análise de dados digitais, porque permitirá assegurar a
autenticidade e integralidade dos elementos de prova e submeter tal atividade
investigativa à posterior crítica judiciária das partes, e excluirá que tenha
havido alterações indevidas do material digital". (Os standards metodológicos de produção na prova digital
e a importância da cadeia de custódia. Boletim IBCCRIM, 2021, p. 2).
Nesse diapasão,
entende-se que os diversos procedimentos realizados pela polícia investigativa
devem ser minuciosamente documentados, pois todas essas informações fazem parte
do histórico da cadeia de custódia de uma prova digital, sem as quais não seria
possível – indiscutivelmente – aferir o grau de fiabilidade da prova, motivo
pelo qual esta deve ser desconsiderada no processo, por ser inadmissível, de
modo a não poder ser utilizada como elemento da formação da convicção do
julgador da causa.
Não obstante, a
fiabilidade da prova não é unicamente relacionada aos princípios do processo
penal em si, como também afeta os primados constitucionais do devido processo
legal e da dignidade da pessoa humana, além do fato de que uma cadeia de
custódia não documentada impede o pleno exercício do direito de defesa, haja
vista que não há possibilidade da defesa técnica ter acesso a todas as
informações atinentes a um processo penal regular.
Não por outros
motivos o próprio Superior Tribunal de Justiça já decidiu, em outra ocasião,
pela nulidade de provas em decorrência da quebra da cadeia de custódia de
provas digitais, como no HC nº 160.662/RJ.
Por fim, conclui-se que a
inobservância do procedimento (a quebra da cadeia de custódia), decorrente da
ausência de documentação acerca da coleta, acondicionamento, tratamento e exame
das provas digitais, gera a inadmissibilidade da prova por não existirem elementos
capazes de demonstrar a integridade dos elementos submetidos à perícia.
Lázaro Herculles Henrique Teixeira - Advogado Criminalista. Gestor da área Penal do Vigna Advogados Associados. Pós-graduando em Ciências Criminais pela USP/FDRP.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
[1] Os standards metodológicos de produção na prova digital e a importância da cadeia de custódia. Boletim IBCCRIM, 2021.
[2] CARVALHO, R.W.R. A importância da cadeia de custódia na computação forense. Revista Brasileira de Criminalística, 2020
[3] STJ, 5ª Turma, RHC nº 143.169, Rel. Min. Jesuíno Rissato, j. em 07.02.2023.
[4] PRADO, Geraldo. Breves notas sobre o fundamento constitucional da cadeia de custódia da prova digital. Disponível em: https://geraldoprado.com.br/artigos/breves-notas-sobre-o[1]fundamento-constitucional-da-cadeia-de-custodia-da-prova-digital/. Acesso em 22 de janeiro de 2021.
[5] STJ, 6ª Turma, HC nº 653.515, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. em 23.11.2021, DJe 01.02.2022.
[6] STJ, 5ª Turma, RHC nº 141.981, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 23.03.2021, DJe 29.03.2021.
[7] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-13/romulo-moreira-manutencao-cadeia[1]custodia-prova. Acesso em 13 de março de 2023.
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