"O crime não é um suplemento do mundo ordinário: ele o insinua pelos interstícios mais banais da vida cotidiana", registrou Bensoussan. O crime cometido pelo médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra, que estuprou uma mulher que estava em trabalho de parto, dentro de um hospital em São João de Miriti, na região metropolitana da capital fluminense, faz parte desses atos que empurram a violência ao infinito no cotidiano. O que leva um homem a cometer um crime desses e devastar a alma de milhares de brasileiras, não nos pertence. Não conseguiremos decifrar.
Existem imagens que nunca deveríamos ter visto.
Cenas repugnantes. O rol de violência em face da mulher ultrapassa o
pensamento e mergulha para rumos mais brutais.
Os fatos ocorridos, durante essa cesariana, trazem
de volta a temática da violência sexual e obstetrícia em face da mulher.
Pavimentou-se nesse crime odioso e repugnante, um fato que cada vez é mais
constante e que tem vítimas bem precisas. A morfologia desse estrupo,
cometido debaixo de câmeras revela o perigo que caminha junto com o destino de
ser mulher, no Brasil.
A força dos movimentos feministas no Brasil e a
agenda de controle de violência em face da mulher, fez ecoar com mais nitidez e
comoção, o episódio de ultraviolência ocorrido nesse hospital, reuniu nesse
crime cruel um misto de maldade, desequilíbrio, nojo e provocou estupefação da
sociedade.
Um estupro no Brasil acontece a cada
10 minutos, e um feminicídio a cada 8 horas, segundo dados da Uol e do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Esses dados são um tiro na liberdade e
em nossos corpos de mulher grávida ou não, que amargam experiências de enorme
irrupção violenta. Lutamos por chances capazes de contê-la. Mas
anestesiadas, sedadas e desacompanhadas somos presas fáceis e praticamente
incapazes de defesa.
Se há alguma chance para a diminuição desses
crimes, ela está além do protesto moral que já se consuma, e da quebra do
silêncio. Precisamos é de um engajamento de toda a sociedade num processo
extremamente coeso, não marginal, e de punição severa e rápida desses crimes.
Impressiona que foram colocadas câmeras na sala de
parto e que já havia fundada suspeita de que o Dr. Giovanni usava doses
elevadas de sedativos em suas pacientes. Assim, sua conduta realmente
fisga a lógica do homem de bom senso, quase a indicar omissão que levou
a ocorrer esse crime. Além disso, há indícios fortes de que ocorreu debaixo dos
olhos de profissionais que se mantiveram restritos, cegos, numa engrenagem
completamente passiva.
A probabilidade desse crime, o contexto
completamente propício para a sua ocorrência desembocam numa lógica
assustadora: a grande metáfora que ronda a mulher como sendo objeto.
É preciso romper, seja na hora do parto, o momento
em que a mulher é lançada ao mar da vulnerabilidade e fora dele, com essas
amargas vivências criminosas que acompanham a mulher e seu corpo. Apesar de ser
lei, a maioria das mulheres brasileiras dão à luz sozinhas, sem possibilidade
de se ter um acompanhante durante o parto, inclusive no pós-parto, de imediato.
Ainda que esse crime tenha tido uma dimensão
enorme, a cultura brasileira é quase insensível aos sofrimentos das
parturientes e a comunidade médica denega a realidade, por medo de denunciar e
porque se sustenta uma visão conservadora, discreta e silente.
Não devemos nos esquecer que há um avanço nesse campo; quase um complô ético positivo e atuante, daqueles não são coniventes. Percebe-se pelo tom da mídia, das notícias constantemente noticiadas, e pelo próprio aumento das denúncias no Conselho Regional de Medicina (CRM), que o enquadramento legal e a punição desses profissionais, sofrem um novo framing: não há mais vantagem ou desejo de esconder esses rostos.
A
esperança da mulher brasileira é que essas posições sejam realçadas e que uma
resistência coletiva seja progressivamente capaz de retirar a mulher da cena do
estupro, ou de morte, através de aplicação de limites jurídicos, políticos e
ações públicas repressores da violência de gênero.
Não podemos ceder à fantasia de que a mulher
brasileira está protegida, nem tampouco acreditar que haja uma política de
coligação e engajamento que faça uma blindagem efetiva à violência obstetrícia,
e aos outros riscos que suportamos. Há caminhos percorridos, sim. Mas por
hora, persiste a tristeza e a insegurança. O naufrágio é sempre iminente. A
escala da violência não permite que sejamos artificiais, insensatas,
irresponsáveis e imprudentes.
Afora, as considerações táticas de luta e a força
da construção dos movimentos de sororidade e solidariedade e da Justiça, o que
nos resta é resistir como se fosse melhor nutrir a esperança do que afundar em
desespero.
Maria Inês Vasconcelos - advogada, pesquisadora, professora universitária
e escritora.
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