A situação vivida por uma mulher que, em franco surto psicótico, foi encontrada por seu companheiro mantendo relações sexuais com um homem que vive em situação de rua, dentro de um carro, espalhou-se pelas redes sociais. Após se recuperar da crise, deu entrevistas em que dizia ter visto o rosto de seu marido, e de Deus, no morador de rua.
Há
mais de 20 anos lidando com pessoas em sofrimento psíquico, algumas das quais
em crises tão graves quanto a deste caso, noto que persistem os preconceitos e
estigmas relacionados ao assunto. Igualmente perturbadora é a descoberta de
que, quando se trata da chamada sanidade mental, a fronteira que separa o
normal do patológico pode ser tão frágil quanto os argumentos de milhões de
juízes dos tribunais virtuais, aos quais essa mulher, aliás ambos, foram
submetidos. O “mendigo pegador” – como ficou conhecido o homem – virou mais uma
dessas celebridades semanais. Sua falta de censura ao narrar o episódio coloca
em questão se o transtorno mental estaria somente do lado da mulher.
Essa
história atualiza duas referências fundamentais para os que estudam, trabalham
ou se interessam pela Saúde Mental. A primeira é a crítica do psicanalista
Jacques-Alain Miller, defendida em seu trabalho Saúde Mental e Ordem Pública, no qual aponta
que o critério mais evidente da perda da saúde mental é justamente a
perturbação da ordem pública. A segunda pelo o que é dito, mas também pelo não
dito, aquilo que é esquecido ou silenciado: pela escuta. Por vezes, uma
crise pode se tornar a forma mais dramática de irromper no real algo que não
pôde ser dito e elaborado na realidade psíquica.
A
segunda referência diz respeito ao filósofo Louis Althusser, cujo histórico de
vida foi marcado por diversas crises entre 1947 e 1980. Na manhã de um domingo
de 1980, em uma nova crise, assassinou por estrangulamento sua companheira de
mais de trinta anos. Sentenciado à impronuncia, não teve direito à defesa ou a
qualquer manifestação pública sobre o crime, e retirou-se da vida laborativa,
intelectual e produtiva. Como forma de amenizar, nas suas palavras, a “pedra
sepulcral do silêncio” ao qual foi submetido, escreveu O Futuro Dura Muito Tempo,
não para eximir-se das responsabilidades pelo assassinato, mas para responder
pelo seu ato e tentar lançar luz sobre uma pergunta que o atormentava: “como é
possível que eu tenha matado Heléne?”.
Hoje,
a condenação não é mais ao silêncio, mas à superexposição das imagens e das
falas dos atores que embalam um mercado consumidor do produto que histórias
dessa natureza se tornam. Além disso, o tempo dos tribunais virtuais
pulverizou a distância entre a ocorrência de um fato, sua apreensão, análise e
conclusão. A condenação dessa mulher (aliás, de ambos) praticamente simultânea
aos fatos, é um signo desse estado de coisas onde o passado, presente e futuro
se misturam. No caso dela, só após seu restabelecimento psíquico o seu
testemunho pôde ser ouvido, conduzindo-a involuntariamente ao retorno dos fatos
traumáticos e denunciando a convulsão dos tempos atuais, onde o futuro já nasce
como passado.
André Dória - Coordenador do Programa de Transtorno Bipolar
da Holiste Psiquiatria
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