Opinião
Reli, depois de muitos anos - creio que desde
alguma obrigação escolar, quando enfrentar esses textos parecia um tormento sem
fim -, o conto A Sereníssima República, publicado por Machado de Assis, em
1882, na Gazeta de Notícias - e que reencontrei em uma coletânea de 50 textos
realistas e naturalistas que comprei no Kindle por 1,99. Li na penumbra de um
fim de dia, esquecido de quase tudo do conteúdo do conto, apenas com a
lembrança baça de que não me era de todo estranho. E, na medida em que a
história ia se desenrolando - narrada pelo personagem cônego Vargas, que então
a oferecia a um público atento na forma de uma conferência, tão ao gosto
daquele tempo, quando era possível saber as novidades das Ciências como quem
apura o resultado das loterias -, não havia como eu me desvencilhar das
tratativas atuais, no Congresso Nacional, de mais uma reforma eleitoral, focada
agora nas urnas eletrônicas, ditas, sem qualquer prova ou evidência, como não
confiáveis.
Aliás, como não se cansam de saber, inclusive as
centenas de milhares de mortos dos últimos meses, a desconfiança tornou-se a
nova moda no país, indo das vacinas às máscaras, passando pelas Universidades -
verdadeiros antros de maloqueiros - e pela imprensa - toda mancomunada com os
comunistas da grande potência oculta das Américas, a ilha de Cuba - e chegando
mesmo a médicos e advogados, sendo que em relação a estes últimos, sem que se
tenha conhecimento de grandes manifestações de desagravo.
A história fala de uma descoberta incrível, sobre
uma comunidade de aranhas que falam e que resolvem, emulando Hobbes ou Locke,
firmar um contrato social e estabelecer as regras da cidadania por meio do
modelo da antiga República de Veneza que, como sabemos, tinha tanto de
República quanto tinha de seca no inverno. O dito cônego relata então as
dificuldades em ajustar o sistema, cuja eleição dos nomes para os cargos
públicos eram escolhidos por um sorteio, retirando bolas de um saco feito pelas
finíssimas teias elaboradas por dez aranhas conhecidas pelo epíteto de “mães da
república”.
Na medida em que o processo apresentava
“problemas”, buscava-se ajustá-lo alterando o tamanho ou a textura ou até mesmo
a transparência do saco, para logo depois mudá-lo de novo, sem que se
percebesse - ora, é para isso que serve a narrativa: para que nós, espertos
leitores, percebamos - que o problema estava na falta de espírito republicano
dos concorrentes aos cargos. E, mais uma vez, vi-me com a mente invadida pelo
presente e pelos discursos em torno da importância de dar transparência às
eleições, como em um déjà vu de outra obra mais recente, mas
não menos clássica: 1984.
O conto termina com uma alusão a Ulisses, de
Homero: as fiandeiras seriam Penélopes a fiar e a desfiar tapetes enquanto os
embusteiros a cortejavam e consumiam tudo o que havia na despensa - pensando
apenas em tirar o melhor do público em proveito próprio - à espera da volta do
seu Odisseu, para produzir melhores dias. Um Odisseu não como personificação do
salvador da Pátria, mas sim como esperança da restituição do elo fundamental de
constituição da cidadania, quebrado e degradado pelos interesses privados,
impudicos.
A perseverança à espera da sapiência, conclui o
conto do bruxo do Cosme Velho. Só assim poderia haver res
publica. O resto é só banalidade. E, como sabemos o que advém dela,
o mal.
Daniel
Medeiros - doutor em Educação Histórica e professor do Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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