Para 82,6% a dor é rotina.
Dados mostram ainda que 73,8% das queixas são referentes a dor em músculos,
tendões, ligamentos, articulações e ossos.
Há mais
de 30 anos morando na rua, José Roberto da Silva diz que sente dores todos os
dias (Foto: Cristiane Bomfim | Divulgação Einstein)
Pés inchados e com feridas. Mãos calejadas. Dor constante nas
costas e braços. Morador das ruas da cidade de São Paulo há mais de 30 anos,
José Roberto da Silva Cirilo, de 47 anos, percorre diariamente a região central
puxando uma carroça. Dorme, na maioria das vezes, no frio das calçadas e sob
marquises que nem sempre o protegem do sereno. Estudo inédito realizado pela
enfermeira Ariane Graças de Campos e coordenado pela pesquisadora do Instituto
Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (IIEP), Eliseth Ribeiro Leão,
mostra que a dor física sentida constantemente por José Roberto é também rotina
na vida de 82,6% dos 69 moradores de rua entrevistados para o trabalho
realizado na capital paulista, sendo que as musculoesqueléticas representam
73,8% das queixas – elas ocorrem em músculos, tendões, ligamentos,
articulações e ossos.
Levantamento divulgado em 2015 pela Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas (FIPE) a pedido da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento
Social mostrou naquele ano 15.905 pessoas vivendo em situação de rua na
capital. No país, o número estimado no mesmo ano era de 101.854. A pesquisa “A
dor do morador de rua” mostra que, em média, os moradores de rua convivem por 8
anos com a dor e que a percepção é menor para quem está há mais tempo nessa
condição. Desde que foi expulso de casa pela ex-mulher há três meses, o
vendedor Antônio Onofre da Silva Júnior, de 36 anos, perambula no entorno da
Praça da Sé. Algumas vezes consegue vaga em algum dos albergues da cidade e diz
sentir muita dor pelo corpo. “Ainda não me acostumei com essa vida de dormir no
chão duro e sem conforto. Acordo arrebentado, mas dizem que depois a gente
esquece”, contou.
Mais alarmantes são as informações de que 69% dos entrevistados
sentem dor todos os dias e que, em grande parte dos casos, a duração é de horas
(para 39,1%) ou dias (40,6%) seguidos. “A dor faz parte do viver dessas
pessoas. Eles convivem por tanto tempo com ela que se acostumam, se acomodam e na
maioria das vezes não procuram ajuda”, explica Ariane que, entre 2009 e 2017,
trabalhou no atendimento dessa população. Esse comportamento é o mesmo
para graus leves e intensos, sendo esse o grau mais apontado pelos moradores
ouvidos no estudo: 61,2%.
A dor interfere em todas as atividades do dia a dia desses
indivíduos, especialmente no sono. Para 87,2%, a condição de rua prejudica a
qualidade e a duração do sono. Isso é atribuído ao fato de a maioria dormir no
chão, estar exposta ao frio e vulnerável a fatores como violência. Na
sequência, os itens mais mencionados foram humor (83,8%) e trabalho (79,3%).
Intensidade da dor
|
|||
Atividade diária
|
Intensa
|
Moderada
|
Leve
|
Sono
|
87,20%
|
7,3%
|
5,50%
|
Humor
|
83,80%
|
13,0%
|
3,20%
|
Habilidade
de caminhar
|
81,80%
|
11,0%
|
7,20%
|
Trabalho
|
79,30%
|
17,2%
|
3,50%
|
Apreciar
a vida
|
79,20%
|
11,3%
|
9,50%
|
Atividades
gerais
|
70,50%
|
23,0%
|
6,50%
|
Relações
pessoais
|
67,20%
|
16,4%
|
16,40%
|
O carroceiro José Roberto diz que seu corpo dói mais quando
está parado, percepção de 27,5% dos entrevistados. Por isso, prefere ocupar a
maior parte do dia recolhendo, em lojas e prédios, materiais que podem ser
vendidos em ferros-velhos. Acorda às 7h e dorme depois da meia-noite. E quando
a dor aperta, não é uma Unidade Básica de Saúde (UBS) que procura. Ele se
automedica, “Uma vez um médico me receitou um remédio. Agora vou e compro
direto”, conta. Diferentemente dele, grande parte dos moradores – 40% – usa
medicamentos prescritos. O consumo de álcool e droga também é opção válida para
13,1% e 10%, respectivamente.
Negligência
De acordo com a pesquisadora do Einstein, Eliseth Leão, o estudo é
um retrato da negligência da dor no Brasil. A dor está presente em todos os
países – dos desenvolvidos até os mais pobres –, mas não estamos preparados
para perguntar e identifica-la nas pessoas. Um exemplo é o fato da cartilha do
Ministério da Saúde (cartilha Saúde da População em Situação de Rua,
publicada em 2014) não tratar do assunto. No caso dos moradores de rua,
a questão se agrava: eles não têm acesso ao tratamento, sem falar nas questões
de adesão e comprometimento que para eles é muito mais complicado, segundo
Eliseth.
Dor emocional
No início
do trabalho, a ideia de Ariane não era investigar a dor emocional, mas o tema
era recorrente durante as entrevistas. O resultado demonstrou que 78,3% dos
entrevistados convivem com algum tipo de dor emocional. “A maioria por conta da
morte da mãe. Esse é um fator que desorganiza o sujeito, que o leva para a
bebida ou para a rua”, explica Ariane. “Nunca tinha me dado conta do quanto a
falta da presença materna pode desestruturar uma pessoa”, continua.
A pesquisa
O estudo considerou 69 pessoas que moram nas ruas do centro da
capital paulista – região do Parque D. Pedro II, Rua 25 de Março, Zona
Cerealista e Avenida do Estado. O universo inicial era maior, mas foram
excluídos indivíduos com sinais de intoxicação por álcool e drogas, discurso
delirante, menores de 18 anos e os que viviam há menos de 12 meses na rua.
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