A tragédia da inundação que se abateu sobre o Rio
Grande do Sul, devastando 428 municípios, deixando 107 pessoas mortas, mais de
130 desaparecidas, e afetando mais de 1,5 milhão de cidadãos - dos quais 159
mil desalojados (dados de 09.05.2024) -, trouxe dor e sofrimento ao povo gaúcho
e comoveu o país inteiro. Por sua magnitude, o desastre natural merece,
obviamente, a sensibilização e a solidariedade nacionais. No entanto, o socorro
amplo e imediato à população e a reconstrução das cidades não podem esconder
algumas reflexões que precisam ser feitas para que tragédias como essa não se
repitam e para que todos - a classe política em especial - tomem consciência
sobre suas ações e omissões.
As autoridades precisam buscar as causas do
problema. No caso do Rio Grande do Sul, a gênese da tragédia não está nem no
rio Guaíba nem no rio dos Sinos, e sim no Rio Taquari que, com elevação do seu
nível a mais de 32 metros – 6 ou 7 metros acima do normal e mais de 2 metros
acima da maior enchente até então registrada, em 1941 – deságua boa parte no
Guaíba. O relevo, a hidrografia da região metropolitana de Porto Alegre e, mais
recentemente, o aquecimento global, dificultam o escoamento de água.
De seu nascedouro em Cambará do Sul e Bom Jesus, aí
com o nome de Rio das Antas, em São Valentim do Sul, o rio recebe as águas do
rio Carneiro e então ganha o nome de Taquari, percorrendo, no total, 550 km do
seu nascedouro até sua foz.
Trata-se de um rio amplamente mapeado, mas que
mereceu pouca atenção na compreensão sobre a tragédia gaúcha. Aliás, é estranho
que, mesmo com todos os recursos técnicos hoje disponíveis, não se tenha
conseguido evitar uma enchente de proporção ainda maior que a de 1941, mesmo
tendo se passados, portanto, 84 anos. Fica evidenciada a falta de políticas
públicas de prevenção de acidentes, fator determinante na ocorrência, e
repetição de tragédias. A capital Porto Alegre, embora tenha 68 km de diques,
muros de contenção, comportas e bombas, há décadas faz manutenção precária
desses equipamentos.
As tragédias que vêm se sucedendo no Brasil ainda
não convenceram a sociedade de que os desastres naturais são sempre
consequência das ações antrópicas do homem, a espécie que todos ainda insistem
em afirmar que é o único ser racional.
O Homem executa planos de ocupação dos solos das
cidades brasileiras e não deixa áreas para permeabilidade e escoamento da água,
constrói nas encostas, desmata, provoca o assoreamento dos leitos dos rios,
polui as nascentes, invade as margens fluviais para construir barracos, emite
gases de efeito estufa, destrói a natureza em nome do desenvolvimento.
Tudo isso acontece graças à permissividade do poder
do Estado e às políticas públicas equivocadas, elaboradas por quem vê o cidadão
somente como contribuinte, sem enxergá-lo como ser humano, detentor de direitos
e carente de bem-estar. Comprovação desse fato é que o Plano Nacional de
Prevenção de Tragédias está sendo elaborado há 10 anos e nunca é concluído,
numa eterna repetição de um faz-de-conta.
Enquanto isso, as tragédias seguem se repetindo,
com intensidade cada vez maior como mostram os episódios ocorridos nos últimos
anos na região serrana do Rio de Janeiro, em Angra dos Reis, em Santa Catarina,
na Bahia, no litoral norte paulista e, agora, em quase 80% do Rio Grande do
Sul.
A pobreza e a fome ainda envergonham o país que
continua alimentando a já enorme concentração de renda. As desigualdades
regionais e sociais se acentuam e as promessas se repetem a cada eleição. A
grande maioria da população conhece a verdade, mas prefere acreditar na mentira
e naqueles que a pronunciam sem pudor.
Continua atual o que escreveu o diplomata,
historiador e jurista Joaquim Nabuco (1849-1910): “A classe política parece ter
contraído, na bancarrota das promessas e dos compromissos, a faculdade de
tornar-se insensível diante da miséria alheia”.
Também vale uma reflexão sobre o alerta do
economista e escritor norte-americano Harry Browne (1917/1986) para quem “O
governo é bom em uma coisa. Ele sabe como quebrar as suas pernas, apenas para
depois lhe dar uma muleta dizer: se não fosse pelo governo você não seria capaz
de andar”.
Metaforicamente, o governo “quebra as pernas” dos
cidadãos tributando tudo sem oferecer, em contrapartida, educação decente,
segurança pública eficiente, saúde de boa qualidade, saneamento básico
universal e habitação amplamente acessível às famílias de baixa renda. Isso
tudo é tirado da população e, então, o poder público oferece “muletas” como os
programas do bolsa-família, auxílio-gás, vale-dignidade menstrual e, em caso de
tragédias como a do Sul, autorização para saque emergencial do FGTS e
antecipação da restituição do Imposto de Renda e do seguro-desemprego,
vangloriando-se de tais “benesses”. Esse é o retrato do Brasil nas últimas
décadas.
Agora, diante da tragédia o governo federal envia
para o Congresso projeto pelo qual a União fica autorizada a furar o teto de
gastos por meio de crédito extraordinário e renúncias fiscais necessárias para
o enfrentamento da calamidade pública.
Outra medida é a liberação de emendas parlamentares
no valor de R$ 1 bilhão com a finalidade de socorrer o Rio Grande do Sul.
Ajuda, é claro, porém poucas são as emendas de parlamentares que destinam
recursos para prevenção, assim como são raras as liberações para essa
finalidade.
Obviamente, todo recurso financeiro é bem-vindo num
momento de tragédia, mas ninguém propõe doar àquele estado parte do Fundo
Eleitoral, de R$ 4,9 bilhões (aumentado em 92% em relação a 2020). Esta, sim,
seria uma iniciativa elogiável do Congresso. Afinal, o valor das emendas sai do
Orçamento da União. Do bolso dos parlamentares nada é destinado em socorro dos
brasileiros do Sul.
O Executivo também poderia, com base no artigo 3º
da Constituição Federal de 1988, que discorre sobre uma sociedade justa e
igualitária, destinar para o Rio Grande do Sul R$ 3 bilhões do orçamento da Lei
Rouanet, com o apoio da classe artística, a maior beneficiada com essa
legislação. Esse valor, somado a R$ 2,3 bilhões retirados do Fundo Eleitoral,
representaria valor suficiente para a construção de mais de 20.000 residências
para a população de baixa renda afetada pelas inundações no Sul. Outra medida
essencial para aliviar o caixa do Governo do Estado sem necessidade de demora
burocrática seria a suspensão por dois anos do pagamento dos encargos da dívida
do Estado, o que poderia representar algo em torno de R$ 6 a 7 bilhões no
período.
É difícil, no entanto, esperar iniciativas dessa
espécie do Executivo e do Legislativo. Como falado, nada se fez nesse sentido
durante os últimos desastres ambientais e agora a história se repete. As
tragédias se sucedem, as mortes se acumulam, populações inteiras perdem tudo o
que construíram na vida, mas nada disso é capaz de sensibilizar a classe
política, com olhos voltados menos para a população e mais para os recursos
necessários na busca pelos votos.
Alguém já disse que no Brasil vivemos em uma
cultura de embalagens que despreza o conteúdo. Os governos vêm se
especializando nisso.
Samuel Hanan - engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br