Com o objetivo de prevenir e dar tratamento a situações de superendividamento, recentemente foi publicada a Lei nº 14.181/2021, inserindo artigos no Código de Direito do Consumidor (CDC). O superendividamento é a "impossibilidade manifesta de o consumidor, pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu mínimo existencial".
Antes dela, tínhamos elencados no artigo 6º do CDC
nove direitos básicos do consumidor. Com a sanção da referida lei, foram
adicionados ao artigo 6º os incisos XI, XII e XIII, os quais trazem a garantia
de práticas de crédito responsável, de educação financeira, prevenção e
tratamento de situações de superendividamento, a preservação do mínimo
existencial e a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de
medida. Além disso, também foi adicionado um capítulo específico: o Capítulo
VI-A, sobre a Prevenção e o Tratamento do Superendividamento.
A construção da lei foi baseada no modelo francês
que trata sobre o tema, em detrimento do outro modelo existente, o americano.
Esse último considera que se o fornecedor de produtos ou serviços contribuiu
para o superendividamento do consumidor, a dívida será extinta, valorizando a
reconquista do seu poder de compra.
A lógica do pensamento americano é que se o
superendividado puder continuar comprando, todo o sistema econômico também
ganha: as empresas são remuneradas, aumenta a quantidade de empregos e há o
recolhimento dos impostos. No Brasil foi adotado o modelo francês: o consumidor
arca com a sua dívida, porém, deve ser garantido o mínimo existencial.
Observando os dados da Confederação Nacional do
Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), que demonstram que o número de
famílias endividadas o Brasil alcançou o patamar de 69,7% em junho – maior
percentual desde 2010 -, percebeu-se a necessidade da adoção de
institucionalizar pela lei o tratamento da situação do consumidor
superendividado, afim de se buscar um maior equilíbrio na economia: se o
consumidor está endividado, não conseguirá manter o seu poder de compra, as
empresas também não lucram, aumenta o desemprego e não há queda substancial na
arrecadação de impostos.
O princípio do mínimo existencial é um dos pontos
mais relevantes da atualização do CDC, tanto que os incisos XI e XII do artigo
6º o define. Assim, no momento da repactuação, o mínimo existencial deve ser
garantido para preservar a dignidade da pessoa humana, ou seja, o consumidor
pagará a dívida, mas com direito a um mínimo de subsistência.
O que deve ficar claro para as empresas é que o
objetivo não é proteger todos os tipos de consumidores. E sim, os que de boa-fé
assumiram um compromisso sem a oportunidade de informação e sem o conhecimento
de quão a sua renda será comprometida.
Por isso, é necessário diferenciar o
superendividamento ativo do passivo. O ativo é aquela pessoa que não
consegue se controlar e realiza compras desordenadamente. Essa não terá a
acolhida pelo CDC. Já o passivo é o consumidor que é levado ao endividamento
pela ausência de informação, práticas educacionais ou pelas técnicas de
marketing agressivas - a lei também passa a proibir qualquer tipo de assédio ou
pressão para seduzir os consumidores.
Dessa forma, antes da nova lei, valia apenas o que
estava no contrato, independentemente se o consumidor foi induzido a erro ou
não. Ou seja, se havia obrigação de pagar, o consumidor, consequentemente,
ficava em dívida e precisava arcar com os custos. Porém, hoje ocorre a
responsabilidade inversa para as empresas: o risco é de quem empreende e não de
quem consome, sendo observados sempre os deveres de informação e de educação ao
consumidor.
Quando se fala em crédito responsável, educação e
prevenção há a garantia da adequação da fase preventiva, ou seja, antes de
conceder o crédito, a instituição financeira tem o dever de observar políticas
públicas existentes, de informar para que o consumidor tome a decisão de forma
consciente e que não haja endividamento excessivo por ausência de conhecimento.
Assim, percebe-se dois tipos de encargos aos
fornecedores: o da prevenção (antes do ato da compra) e o da reparação.
Primeiro, existe a obrigação de educar e informar, e caso ocorra o negócio
jurídico sem se observar o cumprimento das medidas preventivas, o contrato
poder vir a ser repactuado, ou seja, revisto.
Ademais, não é qualquer tipo de fornecedor que é
obrigado a cumprir as novas regras. Os principais fornecedores são os bancos e
as financiadoras. Dessa forma, a empresa não pode fazer empréstimo sem
consultar serviços de proteção ao crédito, ou sem avaliar a situação financeira
do consumidor.
A repactuação do contrato é uma das novas regras, o
que significa que os consumidores terão direito a uma espécie de recuperação
judicial, para renegociarem as dívidas com todos os credores ao mesmo tempo.
Então, em caso de superendividamento, as primeiras perguntas serão se o
consumidor foi devidamente informado, se houve a chamada educação financeira, e
se ele estava consciente das condições da dívida assumida. Caso ele manifeste
que não foram cumpridas as obrigações preventivas, será instaurada a apuração
de culpa de quem o levou ao superendividamento.
O não cumprimento pelo fornecedor de produtos ou
serviços que envolva crédito do mencionado de revisar ou repactuar o contrato
conforme previsto no inciso XI do artigo 6º do CDC, terá como consequência a
possibilidade do consumidor requerer a instauração de processo de repactuação
de dívidas, pautado no desrespeito às garantias do crédito responsável, da
educação financeira e da prevenção. A exceção é para aquela instituição
financeira a qual respeitou o mínimo existencial do consumidor.
O Procon de São Paulo anunciou o lançamento de uma
central para auxiliar os superendividados a renegociarem suas dívidas. O
serviço, oferecido de forma online no site da instituição, entrará em
funcionamento a partir de agosto de 2021. A central possibilitará uma maior
agilidade e irá diminuir a burocratização, sem que seja necessária a
contratação de um advogado para renegociar o débito.
Assim, percebe-se que com novos riscos para as
empresas, há também demanda para novas medidas inovadoras, tanto para garantir
sua reputação, como também para conseguir lidar com a quantidade de novas
demandas que irão surgir. Uma das alternativas é utilizar a mediação online.
Isso porque o mediador pode acolher com escuta ativa, e de maneira imparcial, o
que levou o consumidor a contrair àquela dívida, e assim ajudá-lo junto com a
empresa a chegar a um acordo. Tudo isso sem a necessidade de desgastes em sede
administrativa, nos Procons, e em juízo.
Assim, quando a instituição for acionada em relação
a casos de superendividamento, a empresa pode direcioná-los à mediação online,
onde um mediador entra em contato com o consumidor e iniciam-se as negociações.
Chegando a um consenso, o Termo de Acordo pode ser homologado dando respaldo
legal para ambos os lados.
Dessa forma, ganha a instituição, que preserva sua
imagem com o sigilo garantido pela mediação, e ganha o consumidor, sendo
acolhido e ouvido na construção de uma solução para seu superendividamento de
maneira mais humanizada.
Ana Cristina Freire - sócia-diretora da Mediato Soluções de Conflitos Jurídicos, vice-presidente da Associação Brasileira de Mediação, Arbitragem e Conciliação (Abramac), advogada e administradora de empresas, especialista em Meios Adequados de Solução de Conflitos Humanos, e mestranda em Soluções Alternativas de Controvérsias Empresariais.