Dirigido por Zoë Kravitz, o filme Blink Twice, que inicialmente se chamaria Pussy Island, é uma obra poderosa e intransigente, inserida diretamente nas discussões do movimento #MeToo. Desde o início, o filme me impactou ao expor como homens sedam mulheres para obter vantagens sexuais, apagando não apenas sua capacidade de consentir, mas também suas memórias traumáticas.
Essas condutas são típicas da cultura do estupro e dos crimes sexuais, nos quais a anulação do consentimento e o apagamento das memórias são estratégias deliberadas para silenciar e controlar as vítimas. Muitas vezes, essas mulheres acabam por tentar esquecer ou fingem que não se lembram dos abusos como uma forma de sobrevivência em um mundo que as silencia e oprime.
No
entanto, Blink Twice subverte essa dinâmica ao introduzir o
simbolismo do veneno de cobra, que não é um agente de dor, mas sim de
libertação. Esse veneno salva as mulheres da sedação e do apagamento,
trazendo-as de volta à consciência e permitindo que se lembrem dos abusos,
resgatando assim seu poder e autonomia.
Dessa forma, a cobra no filme se torna uma metáfora poderosa de transformação e empoderamento feminino. Tradicionalmente vista como um símbolo de traição ou perigo, aqui a serpente é reconfigurada como um agente de cura e de força, destacando a capacidade das mulheres de se reinventarem e se fortalecerem, mesmo nas condições mais adversas.
A
cultura do estupro na tela grande
O longa-metragem também explora a domesticação das mulheres pelos homens, tanto de forma literal quanto metafórica. A ilha onde a trama se desenrola simboliza a prisão invisível que muitas vítimas enfrentam, sendo manipuladas e controladas sob o pretexto de proteção. No entanto, Blink Twice destaca que, ao se unirem, as mulheres conseguem resistir e sobreviver.
A sororidade é apresentada como a chave para a libertação em um ambiente no qual o poder masculino é absoluto. A união entre essas mulheres é o que lhes permite sobreviver e também retomar o controle de suas vidas, ressignificando o que é ser forte em um mundo que tenta constantemente silenciá-las.
Outro ponto que me chamou a atenção foi a hipocrisia dos abusadores, retratados como homens que se apresentam como espiritualmente evoluídos — bebendo sucos verdes, fazendo terapia e se engajando em práticas de autoconhecimento — enquanto perpetuam abusos sexuais. Essas condutas são frequentemente observadas na cultura do estupro, na qual os perpetradores mantêm uma fachada de moralidade ou evolução espiritual para mascarar suas ações criminosas.
Quando confrontados, esses homens se classificam como “bons moços”, revelando a dissonância entre suas ações e a imagem que projetam. Em sua produção, Kravitz expõe como essas práticas superficiais podem mascarar a verdadeira natureza desses manipuladores, desafiando a noção de que o desenvolvimento espiritual pode redimir atos profundamente violentos.
O longa ainda faz uma crítica contundente à forma como o poder e o dinheiro podem apagar até os crimes mais graves. Ao mostrar como um bilionário, ao desaparecer temporariamente após cometer atrocidades, é rapidamente esquecido pela sociedade, Blink Twice evidencia a facilidade com que os poderosos manipulam a memória coletiva. Além disso, o filme coloca em foco a responsabilidade compartilhada: o homem que não comete diretamente o abuso, mas observa e nada faz, é tão culpado quanto o perpetrador.
Ainda, o filme é uma obra profundamente relevante, oferecendo não apenas uma crítica feroz à cultura do estupro, mas também uma visão sobre como a solidariedade entre mulheres pode ser uma força de resistência e sobrevivência em um mundo dominado por abusos de poder. Kravitz, em sua estreia como diretora, nos entrega um produto que é tanto um thriller instigante quanto um manifesto feminista.
Se você ainda não viu, recomendo assistir a Blink Twice quanto antes - é um filme que ficará com você por muito tempo depois que os créditos finais rolarem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário