Cerradão de Assis: alta densidade de árvores finas (foto: Giselda Durigan/Unicamp) |
Estudo conduzido ao longo de 14 anos mostra que a transformação da vegetação típica da savana em ‘cerradão’ – uma formação florestal pobre em biodiversidade – ocorre de forma rápida; mata fica menos resistente a secas e queimadas
Com o acelerado processo de
destruição do Cerrado e a falta de manejo adequado das áreas remanescentes do
bioma, extensas porções do território brasileiro estão se transformando em
cerradão – uma formação florestal pobre em biodiversidade, na qual espécies
típicas do Cerrado se misturam com espécies generalistas, que ocupam matas de
galeria e outras estruturas.
Cientistas se perguntam se o
cerradão é capaz de preservar a biodiversidade do Cerrado; ou se tende a
evoluir para um tipo de floresta biodiversa, semelhante à Mata Atlântica; ou
nem uma coisa nem outra.
Um estudo de longo prazo
enfocou o tema. E investigou as mudanças registradas ao longo de 14 anos em 256
parcelas, totalizando uma área amostral de 10,24 hectares, em um cerradão
localizado no interior de uma Unidade de Conservação do Estado de São Paulo: a
Estação Ecológica de Assis.
O trabalho foi publicado no
periódico Forest Ecology and Management.
Concebido e supervisionado pela
professora do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas
(IB-Unicamp) Giselda Durigan, o estudo faz parte do
projeto de doutorado do primeiro autor, Francisco Ferreira de Miranda Santos.
E, entre outros colaboradores, teve a participação de Ricardo Ribeiro Rodrigues,
orientador de Miranda Santos.
O local estudado pelo grupo
está protegido do fogo há pelo menos 60 anos e não se beneficiou, portanto, da
realização de queimadas regulares criteriosas (com zoneamento da área total e
cronograma de queima em datas apropriadas, em sistema de rodízio), que hoje se
reconhece ser uma técnica de manejo da maior importância para a preservação do
Cerrado (leia mais em: agencia.fapesp.br/25865).
Sem queimar durante todo esse
tempo, as árvores se adensaram e cresceram: as modificações na estrutura da
comunidade vegetal e na composição das espécies foram avaliadas pelo grupo da
Unicamp.
Durigan enfatiza o empenho dos
pesquisadores. “Estudos de dinâmica de florestas são, por natureza, demorados.
As mudanças são lentas e é preciso esperar, pacientemente, que a floresta nos
conte sua própria história. O desafio é compreender como os extremos de calor e
frio, excesso ou falta de chuvas, vendavais, ou a simples competição entre as
próprias árvores, disputando recursos como luz, água e nutrientes, vão
direcionando as mudanças no tempo. Além da paciência, esses estudos exigem
também disciplina e trabalho árduo para coletar dados em diferentes ocasiões.
E, depois, inspiração e embasamento teórico para formular hipóteses e
interpretar o que os dados mostram”, diz.
O tamanho da área estudada
(mais de 10 hectares) e o número de árvores identificadas e medidas (mais de 20
mil) fizeram desse estudo um grande desafio. “A cada ocasião de medição, uma
equipe de quatro pessoas trabalhava cerca de um ano para medir novamente todas
as árvores, substituir a numeração perdida, identificar e marcar novos
indivíduos, encarando chuva, espinhos, carrapatos, bernes, buracos de tatus
etc. Depois, fazendo disso o objeto de seu doutorado em ecologia na Unicamp,
Miranda Santos passou meses na frente do computador, organizando o gigantesco
banco de dados, detectando inconsistências, atualizando a nomenclatura das
espécies, pareando as medições feitas em diferentes ocasiões para saber a
história de cada árvore”, conta a pesquisadora.
Esse relato é interessante
porque ajuda a desfazer a falsa ideia de que o processo científico seja uma
avenida reta. Depois que um estudo é publicado, exceto pelas dificuldades
inerentes à linguagem técnica, tudo parece simples. Mas, para chegar a tal
simplicidade, muito esforço é requerido. Durigan conta que Miranda Santos e ela
encararam juntos o desafio de corrigir um erro histórico na malha de
coordenadas das 256 parcelas, que se arrastava desde o início e dificultava
ainda mais o trabalho. “Só tinha uma solução: entrar na mata, procurar as
árvores numeradas dentro de algumas parcelas, mapear sua posição real e
comparar com a posição delas no mapa. Foi assim que descobrimos que o erro era
muito fácil de corrigir: bastava girar a malha de coordenadas 90 graus para a
esquerda e tudo voltava ao seu devido lugar.”
Como resultado do estudo, os
pesquisadores descobriram que, em 14 anos, mais da metade das árvores que
existiam no levantamento inicial já haviam morrido. E outras 10 mil,
aproximadamente, haviam nascido e crescido até atingir 5 centímetros de
diâmetro. Embora 14 anos possam parecer um intervalo longo na escala da vida
humana, eles constituem um intervalo muito curto para uma reconfiguração vegetal
tão grande. Em outras palavras, uma vez desencadeada, a degeneração do Cerrado
em cerradão pode ser bastante rápida.
“O número total de árvores
diminuiu ao longo do tempo. A competição imposta pelas árvores grandes causou a
morte das pequenas. O resultado dessa ‘guerra’ é que vencem as maiores, que
continuam crescendo e acumulando biomassa e carbono. Porém, as maiores árvores
do cerradão não são grandes como as das florestas tropicais, raramente
ultrapassando 30 centímetros de diâmetro. Essas praticamente triplicaram depois
de 14 anos”, informa Durigan.
Segundo a pesquisadora, o
estudo mostrou que não é só a estrutura que muda. Mas também a composição das
espécies. Enquanto as espécies típicas de floresta e as chamadas generalistas,
que toleram a sombra, continuam chegando e proliferando, as espécies típicas de
Cerrado vão desaparecendo, torturadas pela escuridão. “As raras árvores de
Cerrado que ainda estão em pé não deixam descendentes, porque não germinam ou
não crescem à sombra. Lá se vão os pequizeiros, as mangabeiras, as curriolas, o
barbatimão, as paineirinhas, entre muitas outras árvores icônicas”, conta.Árvore típica do Cerrado oprimida pelo dossel do cerradão
(foto: Giselda Durigan/Unicamp)
O que significam essas mudanças do ponto de vista da conservação? “Primeiro, que não se pode esperar que essa área contribua para a conservação da flora do Cerrado. O ambiente sombreado do cerradão é um ambiente hostil para espécies típicas da savana brasileira. Ainda que a riqueza de espécies tenha aumentado em quase 10%, a perda de árvores de Cerrado é dramática e irreversível. Segundo, que é preocupante esse acúmulo contínuo de biomassa em uma região de solos arenosos e profundos, que não são capazes de reter a umidade”, responde Durigan.
Isso significa que o cerradão é
mais vulnerável ao colapso em episódios de seca prolongada do que os Cerrados
abertos. Desnecessário lembrar que estamos, cada vez mais, em um contexto de
crise climática global, no qual eventos extremos tendem a ocorrer com
frequência crescente. Quanto mais biomassa arbórea, maior é a interceptação da
chuva pelas copas e maior é o consumo de água pelas árvores. Se entra menos
água e o consumo aumenta, menor será a duração do estoque de água armazenada.
Ou seja, se uma seca de cinco meses não afeta as árvores em um Cerrado aberto,
a mesma seca pode ocasionar mortandade elevada no cerradão.
“Se as mudanças climáticas na
região caminhassem para aumento e melhor distribuição das chuvas, essa nova
floresta seria compatível com as condições ambientais locais. Porém, as
alterações que já estão sendo sentidas na região trazem temperaturas nunca
vistas, obrigando as árvores a consumir ainda mais água, com as chuvas
escasseando, de modo que a probabilidade de colapso vai se tornando cada vez
maior. Se morrem muitas árvores, o carbono que elas fixaram volta para a
atmosfera. Além disso, muita madeira morta faz aumentar a probabilidade de
incêndios catastróficos. Diferentemente do Cerrado típico, o cerradão não é uma
vegetação adaptada ao fogo. Se queimado em condições extremas, passa a
funcionar como uma floresta degradada”, pondera a pesquisadora.
E Rodrigues comenta: “O artigo
em pauta, expressão de um grande esforço pessoal do doutorando Miranda Santos,
é o primeiro que apresenta a dinâmica de uma parcela permanente de mais de 10
hectares contínuos do cerradão paulista, com dados surpreendentes da
velocidade, intensidade e direção das mudanças na composição de espécies
arbóreas ao longo de um período temporal. Trata-se de uma grande contribuição
para sustentar boas políticas públicas de conservação e restauração da
biodiversidade, em um contexto desafiador de mudança climática”.
Rodrigues destaca que o estudo
consolida cientificamente uma hipótese já cogitada pelos pesquisadores, mas que
ainda não havia sido totalmente testada nessa escala: que a atitude simplista
de apenas proteger a biodiversidade, isolando os fragmentos naturais ou
restaurados de qualquer perturbação antrópica, mas ignorando o contexto
histórico e cultural de manejo sustentável de ecossistemas naturais, pode não
ser a melhor solução, inclusive para a biodiversidade.
O estudo recebeu apoio da
FAPESP por meio do Projeto Temático “Diversidade, dinâmica e conservação
de árvores em florestas do Estado de São Paulo: estudos em parcelas permanentes”,
coordenado por Rodrigues.
O artigo Tree community dynamics in the cerradão (2002-2016): A case of biome shift pode ser acessado em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0378112724000082?via%3Dihub.
José Tadeu Arantes
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/sem-manejo-adequado-cerrado-se-descaracteriza-e-area-fica-menos-resiliente-as-mudancas-no-clima/51546
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