Como a atitude
permissiva de líderes frente à denúncias de assédio ajuda a perpetuar um ambiente
corporativo de agressividade
Ao falar sobre a cultura problemática de algumas
empresas durante os meus treinamentos, gosto de contar a história fictícia da
Purl. Ela é uma novelo de lã rosa que estrela um curta-metragem de animação
produzido pela Pixar e disponível no YouTube. A personagem começa a trabalhar
em um escritório cheio de homens brancos e, após algumas situações, percebe que
o seu jeito “fofo”, leve e colorido não terá espaço ali.
A cultura da empresa não permite que Purl “seja
quem é”. Em um esforço para ser acolhida, escutada e valorizada, ela
rapidamente entende a cultura agressiva da empresa e vai se tornando igual aos
outros colegas e perdendo o que tinha de único, diferente e individual. No fim
do vídeo, vemos que ela dá uma reviravolta e retorna à sua essência. Já no
mundo real, no entanto, esse nem sempre é o final que acontece nas empresas que
não valorizam a diversidade, a inclusão e o pertencimento das pessoas.
A força da cultura corporativa é enorme. Quem chega
de fora aprende como o ambiente funciona apenas observando – e, com o tempo,
passa a reproduzir muitos desses comportamentos. Sempre repito que uma das
maiores influências a essa cultura organizacional são os exemplos,
especialmente os da liderança.
Lembro um episódio interessante que mostra esse
impacto da cultura. Certa vez, atendi uma empresa que há 20 anos obrigava os
colaboradores homens a usarem terno. Quando o fundador se aposentou, seu neto
assumiu como CEO e passou a trabalhar dispensando até o terno e a gravata. Em
três dias – surpresa! – ninguém mais usava terno por lá. Esse é o poder do
exemplo que vem “de cima”. Pouco adianta ter belos valores escritos na parede
da empresa se, na prática, a vivência é outra.
Gritos, batidas na mesa, críticas em público e
apelidos constrangedores certamente não combinam com um ambiente acolhedor,
certo? Essas atitudes têm nome: assédio moral. São condutas repetitivas e
abusivas em que a vítima é submetida a situações humilhantes e constrangedoras.
Ela tem sua dignidade e integridade física e psíquica feridas, com impacto até
no seu emprego e no clima organizacional.
O assédio moral representou cerca de 45% do total
de 5,7 mil denúncias recebidas pelos setores de compliance das empresas
brasileiras entre 2019 e 2022, segundo a IAUDIT Consultoria Empresarial,
especializada em auditorias e canais de denúncia. Foram avaliadas 5,7 mil
denúncias, número que também incluiu queixas de abuso de poder e até agressão
física,
No campo do assédio sexual, o cenário é ainda pior.
De acordo com um levantamento da startup de aconselhamento jurídico Forum Hub,
18,3% das mulheres já sofreram assédio sexual no trabalho, o que representa
cinco vezes mais que os homens. Elas foram abordadas por pessoas com intenção
sexual, para obter vantagem ou favorecimento sexual. Insinuar ou afirmar que a
vítima pode ganhar uma promoção caso saia com quem está acima dela na
hierarquia é um bom exemplo disso. Há ainda situações mais graves envolvendo
contato físico e violência.
Tanto no assédio sexual quando no assédio moral a
situação pode escalar ainda mais. Retaliações são comuns, quando a vítima é
perseguida – e até demitida – por ter resistido a uma conduta inadequada no
trabalho, demonstrado preocupação, ou até denunciado. Essa possibilidade com
frequência desencoraja as vítimas a relatarem a violência vivida ou
testemunhada.
Lembro do dia em que uma amiga me procurou para
contar que havia sido abraçada por trás no elevador da empresa por seu diretor.
Na época, ela trabalhava como gerente e ficou paralisada. Era um caso evidente
de assédio sexual, que a deixou muito abalada. Recomendei que abrisse uma
denúncia, mas ela optou por conversar com o presidente da companhia antes. Como
resposta, ouviu uma frase inacreditável: “Você vai mesmo querer denunciar
contra um dos caras mais importantes da empresa?”.
A permissividade com o assédio sexual e moral
infelizmente é parte da rotina em muitas empresas como essa. Minha amiga é uma
executiva brilhante e, pouco tempo depois, pediu demissão daquela companhia e
foi contratada para outro lugar. Outras pessoas, com trajetórias e realidades
diversas, podem não ter o mesmo final. Aliás, o diretor que a assediou manteve
sua carreira e não sofreu nenhuma punição.
Considero esse tema tão importante que passei
grande parte do ano de 2023 escrevendo um livro sobre o assunto. “Cultural
Organizacional Livre de Assédio” é baseado em pesquisas e 15 anos da minha
experiência acompanhando centenas de empresas como consultora na CKZ
Diversidade. Como mulher, e aqui infelizmente não estou sozinha, minha vida
pessoal também oferece exemplos de assédio – algumas destas histórias também
conto no livro.
Uso os exemplos pessoais e profissionais para falar
sobre as consequências da impunidade, sobre as diferenças entre os gêneros e
também para explorar estratégias para reagir e prevenir essa violência. Também
demonstro a importância de repensarmos como até mesmo as pequenas falas e
atitudes do cotidiano, aparentemente inofensivas, alimentam uma cultura nociva
e permissiva, que só gera exclusão e afeta a saúde mental das pessoas.
O livro será lançado no final de janeiro de 2024 e
meu grande desejo é nos unirmos para mudar a cultura do assédio na qual ainda
vivemos nas organizações. Espero que esse conhecimento ajude, a nós e as
próximas gerações, a criarmos ambientes mais seguros e acolhedores.
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