Em 02/05/2023, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) instaurou um procedimento preparatório de inquérito administrativo contra o Google e a Meta, para o fim de investigar a alegada prática de infrações à ordem econômica, no âmbito das discussões do Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, também conhecido como “PL das Fake News”.
Incumbe à Superintendência-Geral (SG) do CADE
conduzir procedimentos da referida natureza, coletando elementos sobre as
condutas de investigados no prazo de 30 dias e, conforme o caso, decidir pelo
arquivamento da investigação ou pela instauração de um inquérito. O inquérito,
em que se aprofundam as investigações em até 180 dias, pode levar a um processo
administrativo, se constatados indícios de práticas lesivas ao mercado.
O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência foi
acionado por denúncias recebidas pelo CADE de que as referidas empresas
estariam se utilizando do controle dos algoritmos de suas plataformas digitais
(Google, YouTube, Facebook, Instagram etc.) para manipular a informação que
chegava aos usuários acerca do PL 2.630, favorecendo conteúdos críticos ao
texto e dificultando a publicação em redes sociais de posições a ele
favoráveis. Nesse sentido, um estudo realizado pelo Net Lab (Laboratório de
Estudos e Internet e Mídias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
identificou que as plataformas estariam burlando suas próprias regras internas
de publicidade para divulgar mensagens contrárias ao PL.
Assim sendo, as diversas iniciativas ostensivas
adotadas pelas mencionadas plataformas (como o disparo automático de mensagens,
a inclusão de links com críticas ao PL na página inicial do buscador do Google
e a inserção de propagandas em áudio no Spotify) levaram o órgão de defesa
econômica (CADE) a instaurar procedimento para apurar se tais condutas poderiam
ser enquadradas como uma infração à ordem econômica.
O controle de condutas anticompetitivas tem
fundamento constitucional, uma vez que o artigo 173, parágrafo 4°, da
Constituição Federal estabelece que a lei “reprimirá o abuso do poder econômico
que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento
arbitrário dos lucros”. Nesse sentido, a Lei 12.529/2011, que estrutura o
Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e
repressão às infrações econômicas, estabelece, em seu artigo 36, o conceito de
infração à ordem econômica, baseado nos possíveis efeitos de condutas adotadas
por empresas com posição dominante:
Art. 36. Constituem infração
da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados,
que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não
sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre
concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou
serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma
abusiva posição dominante.
Entende-se que uma empresa ou grupo de empresas
detém posição dominante quando controla uma parcela significativa do mercado
relevante, o que lhe permite, deliberada e unilateralmente, alterar as
condições desse mercado, ou quando controla 20% ou mais do mercado relevante em
questão.
É incontroverso que o Google e a Meta são empresas
de enorme poder econômico e grande influência no mercado global de serviços
digitais. A Meta detém o Facebook, o WhatsApp e o Instagram, sendo que
aproximadamente 3,7 bilhões de pessoas utilizam ao menos uma dessas redes
sociais (conforme a própria Meta divulgou em outubro de 2022), o que a torna
detentora de 3 das 6 maiores empresas no setor, congregando 75% dos usuários da
Internet. Por sua vez, a impressionante participação do Google no segmento das
plataformas de busca pode ser verificada a partir da análise do gráfico abaixo,
que evidencia que ele, há mais de 10 anos, detém aproximadamente 90% de
participação no mercado global do setor.
Embora a posição dominante seja evidente, a lei
brasileira não define claramente no que consiste seu exercício “de forma
abusiva”. As medidas adotadas pelo Google e pela Meta na discussão do PL 2630 não
se enquadram explicitamente em nenhuma das 19 condutas elencadas no rol do
artigo 36, parágrafo terceiro, da Lei 12.529/2011 como infrações à ordem
econômica. Contudo, tal rol é meramente exemplificativo, e, diferentemente do
que ocorre com normas sancionadoras de outras áreas (especialmente do Direito
Penal), os ilícitos concorrenciais não foram tipificados de forma taxativa,
sendo antes definidos a partir de uma análise dos efeitos concretos de uma
conduta questionada.
Não é a primeira vez que o Google é notificado por
condutas consideradas abusivas no Brasil. No caso do Google Shopping, por
exemplo, foi acusado de utilizar sua posição dominante para aparecer nos
primeiros resultados das buscas orgânicas do site, mas o CADE decidiu não
aplicar qualquer penalidade à empresa, dada a inexistência de dano evidente.
A discussão não se limita ao mercado brasileiro. No
cenário internacional, em 2017, a Comissão Europeia aplicou uma multa de 2,42
bilhões de euros ao Google, por se aproveitar de sua posição dominante no
mercado de buscas, para distorcer os resultados e favorecer seus próprios
serviços. Em outubro de 2020, por sua vez, o Departamento de Justiça dos
Estados Unidos iniciou um processo contra o Google por violação da lei
antitruste estadunidense (Sherman Act).
Apesar da enorme parcela do mercado controlado pelo
Google, a empresa se defendeu publicamente das acusações de monopólio feitas
pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, primeiramente por meio de uma
postagem feita por seu presidente, Kent Walker, no Blog oficial da empresa. O
post foi divulgado na mesma data em que o Departamento de Justiça dos Estados
Unidos comunicou à imprensa sobre o início do processo. Continha um argumento
simples: “as pessoas usam o Google porque querem, não porque precisam”.
Ademais, a empresa também criou em seu blog oficial uma página permanente
destinada a prestar informações sobre sua política relacionada à disciplina
jurídica da competição nos Estados Unidos. Na página intitulada “Fatos sobre o
Google e competição”, a empresa sustenta que, como os serviços oferecidos pelo
Google são gratuitos, sua posição dominante não se traduz em prejuízos ao
consumidor, o que seria indispensável para a caracterização de uma posição
dominante como ilegal segundo a lei estadunidense.
Há que se destacar, porém, que a gratuidade dos
serviços oferecidos pelas plataformas é apenas aparente, já que, ainda que não
haja contraprestação pecuniária pelos serviços, os usuários “pagam” por eles na
medida em que concedem um poder praticamente ilimitado na definição sobre quais
as informações serão coletadas e utilizadas, assim como sobre quais informações
serão difundidas através de seus canais. A falta de concorrência na Internet
impede os usuários de exercerem o direito de escolha e buscarem empresas
alternativas com políticas de coletas de dados menos invasivas ou por uma
moderação de conteúdo mais transparente.
Enfim, caberá ao CADE determinar se as
manifestações do Google e da Meta em desfavor do PL 2.630 podem ser
consideradas condutas anticoncorrenciais ou se se trata de condutas legítimas
tuteladas pelo direito à liberdade de expressão, de que também são titulares.
Para verificar o enquadramento enquanto infração à ordem econômica, a análise
deverá avaliar os efeitos pretendidos pelas duas Big Techs quanto
ao PL, isto é, se visaram, ao difundir as mensagens contrárias, prejudicar a
livre concorrência e iniciativa, dominar o mercado e aumentar arbitrariamente
seus lucros. Se instaurado o processo e constatada a infração, poderão ser multadas
em até 20% dos respectivos faturamentos brutos do último ano.
Michele
Hastreiter - advogada, e Lorena Hauser, estudante de Direito, fazem parte da
equipe da área Societária da Andersen Ballão Advocacia.
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