Análise proteômica sugere que o vírus zika induz alterações na expressão de proteínas ligadas ao metabolismo das células neurais em desenvolvimento, além de proteínas associadas à maturação de oligodendrócitos (imagem: Wikimedia Commons)
Pesquisadores da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), do Instituto D´Or de Pesquisa e Ensino e da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) identificaram processos
moleculares que podem estar associados à microcefalia em bebês, cujas mães
foram infectadas pelo vírus zika. A descoberta propõe um modelo, no nível
molecular, para a compreensão do conjunto de sequelas provocadas pela infecção
ainda durante a gestação e abre caminho para que novos alvos terapêuticos sejam
desenvolvidos.
O estudo, publicado na revista Molecular Neurobiology , analisou as alterações na expressão de proteínas das células
infectadas (proteômica) e constatou que, ao invadir o cérebro em formação dos
bebês, o vírus zika modula a produção de energia e também controla o
metabolismo do RNA expresso no núcleo celular. De acordo com o modelo proposto,
essas alterações interfeririam, sobretudo, na maturação de partículas
predecessoras dos oligodendrócitos, células neurais responsáveis pela produção
de mielina, uma substância lipídica fundamental para a troca de informação
entre neurônios.
“Com a análise da expressão das
proteínas presume-se que os oligodendrócitos surjam menos maturados, o que pode
levar a déficits na formação da bainha de mielina, com consequências muito
ruins para o cérebro dos bebês em desenvolvimento”, afirma Daniel Martins-de-Souza , professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de
Campinas (IB-Unicamp) e coordenador da pesquisa.
O estudo foi apoiado pela FAPESP por
meio da bolsa de pós-doutorado de Juliana Minardi Nascimento , primeira autora do artigo, e de mestrado de Danielle Gouvêa Junqueira.
“Normalmente,
quando qualquer vírus infecta uma célula, ele tem por objetivo dominá-la para
poder se multiplicar livremente e então avançar para outras partes do organismo
hospedeiro. No caso da linhagem de zika brasileiro, ao invadir especificamente
as células neuronais, ao invés de ocorrer maior alteração na expressão de
proteínas ligadas a essas finalidades clássicas, observamos maior alteração em
proteínas associadas ao metabolismo”, explica Martins-de-Souza.
Para
chegar a essas conclusões, os pesquisadores realizaram dois tipos de
experimentos diferentes. Primeiro, eles infectaram células-tronco neurais
humanas com a linhagem brasileira do vírus zika para identificar a alteração na
expressão de proteínas. As células-tronco neurais humanas foram obtidas a
partir de células-tronco pluripotentes induzidas, ou seja, células da pele reprogramadas
para gerar células-tronco neurais.
Depois do estudo com as
células-tronco, os pesquisadores utilizaram neuroesferas infectadas (órgão
desenvolvido in vitro que simula a
morfologia e o funcionamento de parte do cérebro) para observar o que pode acontecer
durante o neurodesenvolvimento.
Para
comparar os resultados, os pesquisadores repetiram os experimentos com
células-tronco neurais e neuroesferas infectadas pelo vírus da dengue e pela
linhagem africana do vírus zika – normalmente, ambos não infectam células do
cérebro, e muito menos provocam casos de microcefalia. “Esses experimentos
realizados com o vírus da dengue e a linhagem africana do vírus zika não
refletem o que acontece na natureza. Isso porque esses vírus não ultrapassam a
barreira hematoencefálica, que protege o cérebro de patógenos invasores. No
entanto, esses ensaios serviram para comparar a análise proteômica e também
para entender o que o zika brasileiro dispara nas células neurais”, explica
Martins-de-Souza.
Nos
experimentos realizados nas células-tronco neurais, o zika brasileiro
apresentou um comportamento muito diferente dos outros dois vírus. Enquanto
dengue e zika africano têm uma atuação associada a maior produção de proteínas
ligadas para dominar a célula e poder se multiplicar, a linhagem
brasileira modulou essa parte muito importante do desenvolvimento neuronal,
agindo na diferenciação de neurônios e células da glia [astrócitos, micróglias
e oligodendrócitos]”, diz.
Nas
neuroesferas, a atuação também foi diversa. “Mais uma vez, a linhagem
brasileira do zika modulou o metabolismo celular e também controlou o
metabolismo do RNA [que está sendo expresso no núcleo das células infectadas],
fatores importantes para explicar a microcefalia”, pontuou.
Fio desencapado
Martins-de-Souza
explica que a ação do vírus em superativar ou inibir a expressão de proteínas
ligadas ao metabolismo tem vários efeitos. No caso da linhagem brasileira, a
alteração ocasionou déficits na maturação de células neurais importantes para o
desenvolvimento cerebral dos bebês.
Isso
porque uma família de proteínas chamadas hnRNP (ribonucleoproteínas nucleares
heterogêneas, na sigla em inglês) e ligada ao metabolismo celular foi uma que
sofreu alterações na expressão.
“Elas são
muito importantes na maturação e no desenvolvimento dos oligodendrócitos e, por
consequência, na produção da bainha de mielina. Dessa forma, o zika brasileiro
parece interferir nesse processo que pode levar a déficits de mielinização
antes mesmo da formação de células neuronais no período fetal”, afirma
Martins-de-Souza.
O
pesquisador utiliza da metáfora de fios elétricos para explicar a importância
da bainha de mielina no funcionamento do cérebro. “A bainha de mielina seria
uma espécie de encapamento dos fios do cérebro”, compara.
Vale
lembrar que os neurônios se conectam tanto quimicamente quanto por meio de
impulsos elétricos. “No cérebro, a bainha de mielina seria uma espécie de
proteção dos axônios [parte dos neurônios que transmite impulsos elétricos, as
sinapses]. Quando não há sequer a produção dos oligodendrócitos para que haja a
bainha de mielina ‘encapando’ os neurônios, perde-se essa energia”, diz.
Martins-de-Souza
ressalta que os oligodendrócitos são células que já estão presentes no
neurodesenvolvimento dos bebês dentro do útero da mãe, com papel importante
para o desenvolvimento cerebral. “Por mais que os oligodendrócitos não executem
a tarefa de promover a bainha de mielina tão cedo [isso acontece apenas nos
primeiros anos de vida do bebê], eles têm a função de manter o metabolismo
energético dos neurônios. Quando esse processo tão importante de formação não
ocorre a contento, temos alterações importantes no neurodesenvolvimento,
acarretando, no caso da linhagem brasileira do vírus zika, na microcefalia”,
afirma.
O artigo Zika Virus Strains and Dengue Virus Induce Distinct Proteomic
Changes in Neural Stem Cells and Neurospheres (doi:
10.1007/s12035-022-02922-3), de Juliana Minardi Nascimento, Danielle
Gouvêa-Junqueira, Giuliana S. Zuccoli , Carolina da Silva Gouveia Pedrosa,
Caroline Brandão-Teles, Fernanda Crunfli, André S.L.M. Antunes, Juliana S.
Cassoli, Karina Karmirian, José Alexandre Salerno, Gabriela Fabiano de Souza,
Stéfanie Primon Muraro, Jose Luiz Proenca-Módena, Luiza M. Higa, Amilcar
Tanuri, Patricia P. Garcez, Stevens K. Rehen e Daniel Martins-de-Souza, pode
ser lido em https://link.springer.com/article/10.1007/s12035-022-02922-3.
Maria
Fernanda Ziegler
Agência
FAPESP
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