O Brasil é frequentemente citado como um país de memória curta. Colecionamos razões para esta pecha, da qual a nação não consegue se desvencilhar. Escândalos históricos se dissipam rapidamente na mente de nosso povo e os agentes públicos envolvidos em malfeitos com o dinheiro público voltam a se eleger em pouco tempo, como se nada tivesse acontecido.
Este fenômeno é antigo, porém persiste apesar da
consolidação da democracia e do dito amadurecimento político da população.
Exemplo mais recente desse comportamento nacional é a Operação Lava-Jato,
deflagrada em 2014 e considerada a mais significativa ação contra a corrupção
da história do Brasil e uma das maiores do mundo.
Até 2018, os brasileiros tinham a certeza de que a
Lava-Jato desvendara o maior esquema de corrupção nacional, envolvendo a maior
empresa estatal do país, a Petrobras, agentes públicos, operadores do mercado
financeiro e empreiteiras. Revelou-se o pagamento de propinas no valor de 1% a
5% de contratos bilionários superfaturados, movimentando fortunas ao longo de
anos.
Os números não deixam dúvidas sobre o gigantismo e
o resultado da operação do Ministério Público Federal, que ocupou por anos as
manchetes da mídia e teve repercussão internacional. As 79 operações
deflagradas desde 2014 resultaram em mais de 550 pessoas denunciadas à Justiça,
mais de 174 condenações – algumas posteriormente anuladas -, 140 acordos de
delação premiada – homologados pelo Supremo Tribunal Federal – e 17 acordos de
leniência firmados com empresas envolvidas no escândalo.
Nada menos do que R$ 4,7 bilhões foram devolvidos à
Petrobras e à União. Houve mais R$ 2,1 bilhões pagos em multas compensatórias,
cujo total deve chegar a R$ 12,7 bilhões em razão dos acordos de leniência.
Outros R$ 14,7 bilhões estão previstos em reparações. Isso totaliza R$ 34,2
bilhões, valor que ainda será acrescido de correção pelo índice inflacionário
definido pelo Judiciário ou pelo Tribunal de Contas da União.
Pela primeira vez na história brasileira, foram
presos empresários donos de grandes empreiteiras, acostumados a ganhar as
concorrências das maiores obras públicas. Muitos deles fizeram acordo de
delação premiada, confessaram suas ações como corruptores, detalharam suas
operações ilegais, apontaram os corruptos que receberam propina e concordaram
em devolver aos cofres públicos parte do que foi desviado por meio do
superfaturamento nos contratos.
Dos processos resultantes da Lava-Jato, parte foi
anulada por questões processuais e uma parcela menor foi extinta em razão de
prescrição. Não se trata, portanto, de um atestado de inocência porque nos
casos de prescrição não houve análise do mérito, enquanto os processos anulados
voltaram às fases iniciais no Judiciário, muitos agora em outros tribunais. É
evidente que até a realização dos novos julgamentos outros crimes comprovados
pela Lava-Jato prescreverão. Além disso, faltando apenas oito meses para as
eleições, não haverá tempo hábil para que a Justiça dê novas sentenças e,
assim, muitos dos acusados – tecnicamente ainda fichas-limpas – poderão
concorrer a cargos públicos, inclusive aos mesmos postos que ocupavam por
ocasião dos escândalos de corrupção.
A questão é que, passado pouquíssimo tempo, a
partir de 2020 o Brasil começou a viver um fenômeno extraordinário, um novo
tipo de corrupção no qual existem os corruptores enriquecendo com vantagens
indevidas, porém não existem os corruptos, ou seja, aqueles que recebem propina
para viabilizar as falcatruas. Mágica? Cegueira seletiva?
Em 2021 o quadro tornou-se ainda pior, com a
sensação de que, de repente, apenas algumas pessoas são corruptas e
responsáveis pelo maior escândalo de corrupção deste país. Indivíduos que,
juntos, não lotariam um carro médio. E ninguém mais.
Todo o resto parece ter desaparecido de repente,
como se os bilhões devolvidos aos cofres públicos não fossem prova de nada ou
talvez sejam fruto da bondade dos empreiteiros em repentino ato de benevolência
patriótica. É uma espécie de aceitação - ampla, geral, irrestrita e absurda -
da ideia de que, por exemplo, é possível a infidelidade conjugal sem amante. A
fantasia está mascarando a realidade.
Cabe lembrar o que disse o ministro Luís Roberto
Barroso, em seu voto no julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal de Justiça
no julgamento da suspeição do ex-juiz federal Sérgio Moro no processo
envolvendo o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e o triplex do Guarujá:
“Na Itália, a corrupção conquistou a impunidade. Aqui, entre nós, ela quer
vingança. Quer ir atrás dos procuradores e juízes que ousaram enfrentá-la. Para
que ninguém nunca mais tenha a coragem de fazê-lo. No Brasil, hoje, temos os
que não querem ser punidos, o que é um sentimento humano e compreensível. Mas
temos um lote muito pior, dos que não querem ficar honestos nem daqui para a
frente, e que gostariam que tudo continuasse como sempre foi”. A suspeição
acabou confirmada por 7 votos a 4, mas o voto vencido do ministro Barroso
deixou uma reflexão ainda muito válida, porque permanece atual.
Se estamos vivendo um torpor coletivo, uma amnésia geral, um devaneio absolutório, precisamos de ajuda médica urgente. Sem isso, o vírus da corrupção tomará conta de vez de todo o organismo nacional, enquanto fingimos acreditar que era só uma gripezinha e que ela já passou.
Samuel Hanan - engenheiro com especialização nas
áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi
vice-governador do Amazonas (1999-2002). É autor do livro 'Brasil: Um País à
Deriva'.
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