A
compreensão da atividade cerebral durante uma experiência de quase morte ainda
intriga os neurocientistas. A ideia lógica é que o cérebro se encontra num
estado de hipoatividade nessas circunstâncias, porém estudos em modelos animais
apresentaram dados opostos. Os pesquisadores observaram que após a parada
cardíaca ocorre um aumento da atividade cerebral, principalmente
das ondas gama, resultado de um aumento na hipercapnia (PaCO2) e da parada do
suprimento sanguíneo ao cérebro após a parada do coração.
Estudos
anteriores sobre a atividade cerebral já associaram um aumento da atividade
talamocortical somado ao aumento das ondas gamas em indivíduos saudáveis
relativas à percepção num estado consciente. As ondas alfa, por sua vez, são o
tipo mais comum no nosso cérebro, e são importantes para o processamento de
informações, principalmente no córtex visual.
O
padrão de ondas delta possui uma função inibitória sobre as vias neuronais que
não são essenciais quando executamos tarefas. Já o padrão theta é importante
para a evocação de memórias, especialmente em tarefas que recrutam memória
verbal e espacial, inclusive durante a meditação.
A
atividade cerebral pode ser medida através da eletroencefalografia, e estudos
que avaliaram diversos padrões dessas atividades permitiram concluir que todos
esses tipos de onda interagem e são responsáveis pela comunicação neuronal,
percepção e memória.
É
até meio óbvio dizer que estudos com a finalidade de compreender essa atividade
cerebral em humanos são bastante limitados. Mas nas últimas semanas um artigo
publicado na revista Frontiers in Aging Neuroscience vem
movimentando a internet a respeito desse assunto.
Trata-se
de um relato de caso de um paciente que morreu durante a eletroencefalografia.
Já é bem estabelecido nos livros e artigos da área médica que 6 minutos após a
parada cardíaca, e da cessação do suprimento sanguíneo para o cérebro, ele
morre. Então, a perda das funções cerebrais chega a um ponto sem retorno e a
consciência – nossa capacidade de sentir que estamos aqui e agora, e de
reconhecer os pensamentos – se perde.
Mas
a pergunta permanece - será que alguma atividade residual permanece, pelo menos
por alguns minutos após a morte?
Experimentos
foram realizados na tentativa de entender melhor os relatos de pessoas que
tiveram uma experiência de quase morte. Esse fato tem sido frequentemente
associado a eventos fora do corpo, uma sensação de profunda felicidade, relatos
de chamados, a visão de uma luz brilhando acima, mas também de sensações de
extrema ansiedade, vazio e silêncio.
Vale
salientar que esses estudos possuem inúmeras limitações, talvez a principal
delas seja o fato dessas pesquisas focarem mais na natureza dessas experiências
do que no contexto que as precede.
Outra
limitação importante é a ética do estudo. É muito difícil conseguir permissão
para estudar o que realmente acontece no cérebro durante os últimos momentos de
vida. O artigo de Raul Vicente e colaboradores, avaliou a atividade elétrica
cerebral de um paciente de 87 anos, que devido a uma queda desenvolveu um
hematoma no lado esquerdo do cérebro, resultando em diversos episódios
convulsivos e parada cardíaca.
Essa
é a primeira publicação da história a coletar esses tipos de dados dessa fase
de transição entre vida e morte. Os padrões de onda cerebral percebidos no
paciente após a morte foram muito parecidos aos padrões da atividade cerebral
quando um indivíduo saudável executa uma tarefa, sobretudo quando a evocação de
memórias acontece.
O
estudo relata que durante 30 segundos antes e depois da morte, foi possível
observar mudanças em diferentes tipos de ondas cerebrais, incluindo ondas
cerebrais alfa e gama. É sabido que a conexão entre esses padrões de onda
cerebrais está relacionada com a memória e processos cognitivos em indivíduos
saudáveis. A visualização desse padrão de ondas no paciente do estudo permitiu
aos pesquisadores especular se essa atividade poderia ser justificada como uma
última lembrança da vida, que pode ocorrer nesses poucos segundos no estado de
quase morte.
Ou
seja, de acordo com esse estudo isolado, os filmes de Hollywood podem estar
certos: é possível que nossa vida passe diante dos nossos olhos momentos antes
da morte.
Contudo,
é válido destacar que esses dados são baseados na observação de um único
paciente. Por isso a equipe da pesquisa pede cautela com a extrapolação dos
resultados, pois outros fatores como as próprias lesões cerebrais traumáticas
apresentadas pelo paciente podem afetar o padrão de ondas cerebrais, inclusive
a medicação usada no paciente, que incluía um anticonvulsivante, pode
apresentar tais mudanças.
O
que chamou tanto a atenção a respeito dessa pesquisa é o fato desses dados
desafiarem a compreensão de quando exatamente a vida termina, o que acaba
gerando diversas outras questões.
Um
estudo em animais demonstrou que poucos segundos após a parada cardíaca, a
consciência já é perdida, e em até 40s, a maior parte da atividade neuronal já
desapareceu. Outros estudos relatam que durante o "desligamento" do
cérebro, ocorre liberação de serotonina, um neurotransmissor envolvido com os
sentimentos de felicidade e excitabilidade.
Existem
algumas teorias tentando explicar o motivo da vida passar diante dos olhos de
alguém enquanto o cérebro se prepara para morrer.
I)
Efeito artificial associado ao súbito aumento da atividade
neural quando o cérebro começa a desligar;
II)
Último mecanismo de defesa do organismo tentando superar a
morte iminente;
III)
Reflexo enraizado, geneticamente programado, para manter a
mente "ocupada" enquanto o evento mais angustiante da vida se
desenrola.
Afirmar
qual é a verdadeira não é possível. Nem se somente uma está correta ou se todas
estão corretas, ou ainda, se não é o caso de nenhuma delas. Pesquisas futuras
nessa área, com medidas mais prolongadas da atividade cerebral pós-morte,
incluindo exames de imagem, talvez possam responder essa questão.
Nesse
estudo de Vicente et al. (2022), os pesquisadores conseguiram identificar que
mesmo após a supressão da atividade neuronal em ambos os hemisférios, foi
possível observar uma redução da atividade das ondas alfa, beta, delta e theta
e um aumento da atividade das ondas gama nesse paciente.
Esse estudo fornece a primeira evidência da atividade
cerebral de um paciente em processo de morte, e reforça a hipótese de que o
cérebro humano pode possuir a capacidade de gerar atividade durante uma
experiência de quase morte.
Dra. Marissa Schamne - Doutora em Psicofarmacologia e co-fundadora
da Escola Rigor Científico. Acesse www.rigorcientifico.com.br para conhecer outros artigos sobre ciência e saúde.
Referências
Vicente, R., Rizzutom N., Sarica, C., et al. Enhanced
interplay of neuronal coherence and coupling in the dying human brain. Frontiers
in Aging Neuroscience, v. 14, 2022.
https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnagi.2022.813531/full
Nenhum comentário:
Postar um comentário