A relação do Cerrado com o fogo é antiga, seja de forma natural ou quando é causado pelo homem. As evidências de incêndios no bioma indicam que eles ocorrem há mais de 32 mil anos. Além disso, historicamente, o fogo é usado em diferentes atividades do dia a dia – prática que permanece, principalmente para o manejo de áreas agrícolas e de pastagem.
A evolução do Cerrado fez com que a
região fosse composta por um conjunto diverso de características e
particularidades da vegetação e espécies de plantas que são tolerantes ou
dependentes do fogo. Algumas, inclusive, só conseguem se reproduzir quando
expostas às altas temperaturas das chamas, como a erva conhecida como
cabelo-de-índio (Bulbostylis paradoxa). Todavia, o mesmo fogo que traz
vida é o que destrói esses ambientes naturais, especialmente na época da seca,
período entre maio e outubro, quando ele tende a ser mais intenso e de maiores
proporções, saindo muitas vezes de controle e se transformando em incêndios.
Esse contexto demonstra a relação
dualística do Cerrado com o fogo, o que exige do poder público e da sociedade
civil organizada a criação de estratégias para que ele seja usado corretamente
no bioma. Fogo demais, como se sabe, gera problemas. Já a ausência prolongada
pode gerar grande acúmulo de material combustível (biomassa de capim seco), que
cria condições favoráveis para incêndios de proporções devastadoras e exige
outras formas de manejo.
Por esse motivo, uma solução inovadora
tem sido implementada em diversas Unidades de Conservação (UCs) da savana
brasileira. É o chamado Manejo Integrado do Fogo (MIF), que vem demonstrando
ser uma ferramenta eficaz para a redução de incêndios na região e a consequente
proteção da biodiversidade local. O MIF é uma abordagem de manejo
conservacionista do fogo que busca integrar diferentes ações de prevenção a
incêndios, que vão desde o desenvolvimento de pesquisas científicas, cujos
resultados trazem subsídios para ações práticas, até a implantação de aceiros
negros e queimas prescritas, usados para reduzir o material combustível
existente em uma determinada localidade e, dessa maneira, impedir o avanço de
incêndios.
Embora ainda seja uma prática
reconhecidamente nova para UCs no Brasil, o MIF – amparado pelo artigo 38 da
Lei 12.651/2012 (Código Florestal) – vem ganhando força nos últimos anos. A lei
permite que o fogo, mediante aprovação de órgãos competentes, seja usado,
dentre outras razões, para queimas controladas e em atividades de pesquisa
científica. Não obstante a prática esteja legalmente amparada, ainda existem
lacunas que só podem ser preenchidas por uma legislação específica que
discipline o manejo do fogo e traga no seu escopo um conjunto de regras e
procedimentos para tal. Nesse sentido, desde o final de 2018 tramita no
Congresso o Projeto de Lei nº 11.276, que estabelece a Política Nacional de
Manejo Integrado do Fogo.
Atualmente, várias UCs do Cerrado já
adotam o MIF como parte da sua estratégia de prevenção a incêndios, como é o
caso da Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, pioneira no desenvolvimento
desses trabalhos. Por meio dessa estratégia, a unidade tem reduzido
consideravelmente, nos últimos anos, sua área atingida por incêndios. Outras
áreas protegidas, como os Parques Nacionais Serra das Mesas e Chapada dos
Veadeiros também merecem destaque pelos resultados alcançados com o manejo
integrado do fogo.
Outro exemplo que passou a adotar essa
estratégia de manejo para inibir incêndios é a Reserva Natural Serra do
Tombador, área de quase 9 mil hectares no coração do Cerrado mantida pela
Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. Com base no sucesso obtido em
outras localidades e nos resultados demonstrados por pesquisas científicas
sobre a dinâmica do fogo, o MIF começou a ser adotado na Serra do Tombador em
2020 como parte de ações de prevenção e já apresentou resultados positivos. Em
poucos meses, três incêndios foram contidos em áreas submetidas a queimas
prescritas.
Outra ação de extrema importância para
combater incêndios é o intercâmbio de informações e expertises entre atores de
uma mesma região. Esse trabalho colaborativo possibilita antecipar a chegada de
incêndio, pois o fogo que nasce em uma unidade de conservação ou propriedade
rural pode facilmente se espalhar para outras localidades. Nesses casos, todo
tempo é precioso para conter o avanço das chamas. Com coordenação local, apoio
do poder público e aplicação de estratégias como o MIF, é possível reduzir os
danos do incêndio e garantir a proteção do Cerrado e de sua inigualável biodiversidade.
André Luís S. Zecchin - biólogo e
coordenador da RPPN Reserva Natural Serra do Tombador, localizada em Cavalcante
(GO)
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