O direito de imagem é bastante significativo nos meios artístico e desportivo. Trata-se de um direito personalíssimo que se valoriza à medida que a pessoa natural adquire notoriedade, a ponto de gerar renda através de contratos de exploração desta imagem – exploração que ocorre via exposição da imagem (propriamente dita), da voz e de outros meios de identificação da personalidade. As cifras relacionadas à dita exploração geram interesses de toda sorte, inclusive das autoridades tributárias. Este legítimo interesse fiscalizatório, no entanto, deve observar os limites da lei e até mesmo do bom-senso.
Há pouco mais de 10 anos era criada a Delegacia Especial de
Maiores Contribuinte – DEMAC, órgão integrante da estrutura da Secretaria da
Receita Federal do Brasil, SRFB. Atualmente, o escritório da DEMAC em
Belo Horizonte está incumbido de fiscalizar artistas e desportistas. De forma
assídua, a DEMAC/BH tem lidado exatamente com a questão do direito de imagem de
tais personalidades. Neste âmbito, a abordagem fiscal tem passado sobretudo (a)
pela questão da ilicitude – “impossibilidade jurídica” – de se ceder um direito
personalíssimo para exploração por pessoa jurídica para isso licenciada e (b)
pela suposta ausência de efetiva exploração da imagem por parte de quem seja
sublicenciado pela pessoa jurídica licenciada. Com base nesses dois pilares,
invariavelmente erguidos em conjunto, o fisco federal tem lavrado autuações
contra atletas e personalidades diversas, considerando que os rendimentos da
pessoa jurídica licenciada não passariam de renda da pessoa física licenciante,
em geral decorrentes de contratos de trabalho regidos pela Consolidação das
Leis Trabalhistas, mas “omitidos / disfarçados” por meio da constituição de
pessoas jurídicas.
Os posicionamentos que sustentam tais autuações, porém, são
equivocados.
Primeiramente, é pacífica a licitude da cessão do direito de
imagem para exploração por pessoa jurídica. Trata-se de questão superada, tanto
na via administrativa, por meio de julgados do Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais (CARF), quanto na via judicial, via precedentes sólidos do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) e recente julgado (ADC n. 66) do Supremo
Tribunal Federal (STF) que atestou a constitucionalidade do artigo 129 da Lei
nº 11.196/2005 – referido dispositivo afirma que, para fins fiscais e previdenciários,
regem-se exclusivamente pela legislação aplicável às pessoas jurídicas a
prestação de serviços intelectuais, quando realizados por pessoas jurídicas.
Sem prejuízo disso, é importante comentar a abordagem da DEMAC/SRFB, que
desafia especificamente a prova de uso efetivo da imagem cedida – isto é,
levanta a alegação de que não estaria havendo “efetiva exploração” da imagem,
mas, sim, a criação de estruturas jurídicas “sem propósito negocial”
(simulações, portanto).
Em meio a esse “mutirão” fiscalizatório, são inúmeras as
intimações advindas da DEMAC que iniciam e centralizam a questão da necessidade
de se provar o uso efetivo da imagem. A princípio, tal questão traria grandes
problemas, pois de uma forma ou de outra é possível evidenciar a exploração da
imagem. Existem aparições em mídias, participação em eventos e entrevistas,
geração de conteúdos diversos e de marketing em prol de patrocinadores, tudo a
atrair renda (retribuição direta) ou a captar interessados (retribuição
indireta) para o cessionário.
A questão que surge, porém, é anterior e conceitual. É que,
juridicamente, é rigorosamente desnecessário
“provar o uso efetivo” da imagem. Trata-se da contratação de um direito, que,
como tal, pode ser efetivamente explorado ou não. O que se adquire, afinal, não
é o “uso efetivo da imagem”, mas, sim, a “disponibilidade” da imagem, a
potencialidade se sua exploração. Há semelhanças com o direito de royalty.
Quando se adquire o direito imagina-se que será utilizado, mas por inúmeras
razões estratégicas decide-se por aguardar uma exploração que pode não ocorrer
no tempo contratado. Assim também, por muitas razões, pode uma cessionária de
marca ou patente optar por não as utilizar; nem por isso poderá deixar de pagar
os royalties devidos pelo direito à exploração, direito que persiste
independentemente de seu “uso efetivo” ou não. Inúmeras razões podem tornar a
abstenção mais interessante que o uso: desde episódios negativos porventura
protagonizados pelo detentor original da imagem – e em tempos de “cancelamento”
temos visto diversos contratos sendo afetados por eventos tais – até a simples
ineficiência financeira ou falta dos recursos necessários para se movimentar a
máquina de “exploração efetiva” da imagem. A remuneração, no entanto, sempre retribui a
disponibilidade, não o uso.
Assim por exemplo ocorre no meio artístico. Frequentemente uma
empresa de comunicação dispõe de um elenco de atores e atrizes, cabendo-lhe
decidir quando e se irá utilizar a imagem de quem quer que seja em tal ou qual
obra de dramaturgia. A conhecida “geladeira” também é remunerada, mesmo que os
itens estejam disponíveis
ao invés de “em uso presente”. E não estamos tratando aqui de salário, em que a
relação contratual empregatícia se dá em paralelo e igualmente pode-se – ou não
– utilizar a força de trabalho.
O mesmo ocorre no desporto. O elenco de um clube de futebol, por
exemplo, conta com atletas que estão em melhor fase, e há os que são
momentaneamente mais midiáticos e/ou naturalmente mais carismáticos e/ou tenham
alcançado certa façanha individual. Conforme tais inúmeros critérios,
“explora-se efetivamente” o direito – mas, repita-se, o que importa é que a
remuneração retribui a disponibilidade de tal direito, não sua prática
cotidiana.
Vista de perto, a alternativa (a exigência da tal “exploração
efetiva”) é, aliás, absurda. Afinal de contas, quais são então os critérios
para se concluir que há “uso efetivo” da imagem? Seriam necessárias “Y”
aparições em programas de TV, mais “Y x 3” vídeos no canal oficial do
cessionário, mais “Y x 4” entrevistas coletivas em frente aos logotipos dos
patrocinadores, com “Y” variando em função de fatores como “carisma pessoal”,
“títulos nos últimos 5 anos” e “gols marcados na temporada”?
Qual é o algoritmo sugerido pela Receita Federal?
Cai-se a um nível intolerável – e impraticável – de arbítrio. A
verdade é que as exigências que têm sido postas beiram o pueril.
Como se não bastasse, é sem dúvida necessário contratar a
disponibilidade do direito de imagem a
priori, como investimento e precaução, ainda que seja para evitar
sua exploração por terceiros. É prática saudável e inevitável antecipar esta
contratação. Se a imagem se destacar no futuro, é preciso que ela esteja
previamente contratada. No exemplo futebolístico, clube cessionário e patrocinadores
esperam que todo o elenco possa ter a imagem explorada, e não alguns indivíduos
isoladamente, até mesmo pensando no almejado êxito coletivo. Isso não retira a
necessidade de contratação individualizada e prévia da disponibilidade do
direito.
Nestes meios a imagem é elemento fundamental, com potencial enorme
de valorização, podendo valer até mais do que o próprio trabalho exercido via
contratação celetista. Surge, neste contexto, a questão de valor do contrato,
pois de fato o que existia mais no passado e ainda se pode encontrar é uma
calibragem irreal entre salário e imagem, sendo um contrato de trabalho e outro
um contrato civil, cada qual com tratamento trabalhista (ou não), fiscal e
previdenciário absolutamente distintos.
Para esta questão do valor da imagem contratada, sempre houve a
possibilidade de prova. Novamente vale o exemplo (neste caso real). Imagine-se
determinado(a) futebolista que retorna da Europa extremamente reconhecido(a),
mas com problemas físicos gerados por lesões acumuladas ao longo de uma
carreira vitoriosa. A condição física é discutida com o clube brasileiro, que
por sua vez entende ser válida a contratação pelo que este líder tem a oferecer
extracampo, gerando venda de produtos vários, aumento de bilheteria e de
torcida, enfim, trazendo retorno também aos patrocinadores e diretamente ao
clube cessionário. No valor global a ser pago como salário e imagem, qual dos
dois prepondera em tal situação?
Além disso, no caso específico do futebol, é importantíssimo levar
em consideração a Lei Pelé, que criou presunção de 40% para o valor máximo da
imagem no contexto global de um contrato de trabalho paralelamente firmado,
imaginando-se que com esta mudança legal, ocorrida em 2015, finalmente seria
alcançada a devida segurança jurídica em torno do assunto. Não é o que temos
visto.
Como dito, uma grande leva grande de fiscalizações e autuações
seguem em curso, e as considerações acima são decisivas para a resolução destas
disputas. Nos parece que a fiscalização está equivocada no enfoque de exigir
prova de “exploração efetiva” deste valioso direito, que é remunerado enquanto
tal – um direito de
exploração. – e, pior, não raro insistindo contra a pacificada
licitude da exploração do direito de imagem por meio de pessoa jurídica licenciada.
Flávio Sanches - Responsável pela área
de Direito tributário do CSMV Advogados, com ênfase em consultoria de indiretos
e contencioso administrativo e judicial. Atua também em questões aduaneiras e
previdenciárias. É advogado formado pelo Mackenzie, é Especialista em Direito
Tributário pelo IBET, e possui especialização em Imposto de Renda das Empresas
pela APET. Membro da turma de 2011 do “Introduction to the American and
International Law” ministrado pelo “The Center for American and International
Law (CAILAW) – Dallas / Texas”. Foi Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas da
Secretaria dos Negócios da Fazenda do Estado de São Paulo – TIT/SP em 2012/2013
(representante dos contribuintes).
Matheus Curioni - bacharel em Direito pela Universidade de São
Paulo. É advogado associado de CSMV Advogados, atuante
em Direito Tributário nas áreas de consultoria e contencioso.
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