O estupro coletivo contra uma cidadã no Rio de Janeiro traz para as
manchetes principais dos meios de comunicação a violência sistemática e
crescente que as mulheres sofrem no Brasil. Numa era em que a comunicação é ao
mesmo tempo, imediata e difusa, mas também com alta capacidade de compartilhamento,
precisamos e devemos entender que a conexão pode destruir ou salvar vidas, de
acordo com a difusão que a mensagem tenha e a capacidade de reação das pessoas
diante do que veem. Portanto, essa barbárie precisa ser profundamente
compreendida em nosso meio social e em nossas relações, a fim de permitir uma
verdadeira reviravolta na forma como enfrentamos a violência contra as
mulheres.
E isso, mesmo conscientes de que em um país que teve, há quase dez anos,
a promulgação de uma lei afirmativa voltada ao enfrentamento da violência
doméstica contra a mulher, não é de se estranhar a ocorrência do bárbaro crime
da moça do Rio. Afinal, se precisamos de leis para mudar condutas violentas, é
porque constatamos a falência do comportamento humano. E chamo a atenção para o
termo falência pois não se vê a violência contra a mulher como ela deve ser
vista; não se reconhece a necessidade de rever valores, rever ideias e papeis
social e culturalmente arraigados. Ainda.
O machismo tem grande responsabilidade neste universo. É esse
comportamento, muitas vezes acobertado, aceito e camuflado por suas origens
culturais, sociais, religiosas e familiares que relegam à mulher a um plano
secundário de submissão e opressão em todos os aspectos da vida.
Esta cultura machista impede a importância de se reconhecer a igualdade
entre homens e mulheres, que não se restringe a apenas discursos. Não se
restringe a pequenez da ideia de que se trata de um discurso resumido ao lugar
da mulher na cozinha.
Falar sobre direitos, lutar por eles tem a ver com a vida, com a
dignidade, com um ser cuja alma resplandece. Falar sobre igualdade de direitos
significa negar qualquer espaço à discriminação, ao preconceito, à humilhação.
Significa lutar contra qualquer estupidez que ameaça a sua integridade.
Significa ser solidário com a dor de pessoas que tiveram seus direitos
violados, compartilhar ideias transformadoras.
Olhar para um estupro coletivo, de trinta homens contra uma menina, deve
nos possibilitar, reafirmo, uma reflexão renovadora. O que mais choca? A
violência sexual? A quantidade de homens que se predispuseram à sua satisfação
sexual? Aos trinta homens cujas masculinidades só seriam reforçadas com a
consumação do coito? À moça desacordada, indefesa e completamente suscetível?
Muitos não enxergam o estupro em si como o fator mais gritante. Sim, não
enxergam! Pois temos, na pior das estatísticas, uma mulher sendo acometida por
este delito a cada onze minutos. A pior das estatísticas, pois é um tipo de
crime que não se revela facilmente. Há uma cifra oculta, que camufla a dor de
milhares de moças como a do Rio.
Estupraram a moça do Rio, mas estupram as moças do Brasil. E estuprarão.
Portanto, discutir papeis de gênero é prevenir os feminicídios, as ameaças, as
agressões, as humilhações e também os estupros.
Estupros que são praticados, em sua maioria, contra mulheres. Em nossa
promotoria – GEVID/Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher do MPSP -, vemos crianças e meninas sendo acometidas por
delitos sexuais em que seus algozes não são os desconhecidos, mas sim os homens
de sua família, próximos e íntimos; são justamente aqueles em que elas mais
confiam, aliás é a confiança a grande arma daquele que estupra nestas
situações. E o pior, nesses casos, por anos a fio, até que a vítima se dê conta
de que não era carinho, era violência.
Cada ação criminal proposta segue uma marcha tão dolorosa quanto a
violência sofrida. Questiona-se à vítima, descortina-se sua moral, inicia-se a
caça à absolvição. A devassa a estupra novamente.
O perpetrador continua solto. E vai estuprar sem crer que violenta, sem
o receio de ser pego. Aliás, não teme nada, faz propaganda e coloca na
internet. Assim, como um troféu.
Qual é o limite para a violência? Qual é o limite para o respeito?
Justiça eu quero e acredito. Mas queremos pessoas na Justiça que
compreendam as raízes da violência contra a mulher, que respeitem suas
histórias, que nos protejam e nos tornem cidadãs. Assim como eu comecei, em uma
era que a comunicação é difusa, imediata, quero compartilhar a importância de
fazer para realmente prevenir.
Portanto, para nos capacitarmos ainda mais para prevenir estupros
precisamos enfrentar de forma cada vez mais efetiva os crimes contra as
mulheres neste país. Juntos, faremos isso.
O Movimento do Ministério Público Democrático – MPD repudia qualquer
violência contra o ser humano. E se você pensa assim, compartilhe e nos ajude a
pensar e a permitir que nossas filhas, nossas mães, nossas irmãs, nossas tias,
nossas amigas e inimigas sejam donas de suas próprias vidas.
Fabíola Sucasas Negrão Covas - promotora de justiça do GEVID/Grupo de
Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e integrante do
MPD – Movimento do Ministério Público Democrático