Perda da proteína ACE2 – usada pelo novo coronavírus para invadir
a célula humana – desequilibra sistemas que regulam funções essenciais no
organismo, sobrecarregando o aparelho urinário e provocando lesões nos rins que
podem se tornar permanentes (ilustração: Holly Fischer/Wikimedia Commons)
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Artigo publicado por
pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) na revista Frontiers in Physiology discute mecanismos pelos
quais o novo coronavírus provoca lesões nos rins de pacientes com COVID-19. O
estudo de revisão pode embasar novas pesquisas voltadas à busca de um
tratamento capaz de prevenir problemas mais graves no sistema renal ou até
mesmo o desenvolvimento de uma doença crônica.
O trabalho
mostrou que a interação do vírus com a enzima conversora de angiotensina 2
(ACE2, na sigla em inglês), além de permitir a infecção e replicação do
SARS-CoV-2 na célula humana, pode provocar importante desequilíbrio nos
sistemas renina-angiotensina (que regula a pressão arterial) e
calicreína-cinina (envolvido em vários processos biológicos), influenciando,
por exemplo, inflamação, controle da pressão sanguínea e proliferação celular.
Esse
comprometimento da função biológica da ACE2 pode levar à redução do fluxo
sanguíneo renal e da taxa de filtração glomerular (TFG), alterando a capacidade
dos rins de eliminar substâncias (metabólitos) que em excesso são tóxicas para
o organismo. Além disso, há um aumento da vasoconstrição, que também
sobrecarrega e compromete a função renal.
“Estudos e revisões sistemáticas
confirmaram a incidência de 20% a 40% de lesão renal aguda em pacientes com
COVID-19. Agora estão sendo publicados dados mostrando que em alguns casos a recuperação
é mais lenta e em outros há sequelas, necessitando de diálise para esses
pacientes”, afirma a pesquisadora Nayara Azinheira Nobrega Cruz,
primeira autora do artigo.
Conduzido na Escola Paulista de
Medicina da Unifesp, o trabalho integra o doutorado de Cruz e teve apoio da
FAPESP por meio de três projetos (18/16653-7, 17/17027-0 e 18/23953-7).
Outra parte do estudo, que analisou
um conjunto de dados relacionados à infecção pelo SARS-CoV-2 em gestantes e o
papel de ACE2 na placenta, também foi publicada recentemente na Clinical Science. Mostrou que grávidas infectadas pelo
novo coronavírus correm mais risco de desenvolver pré-eclâmpsia, caracterizada
pela elevação da pressão arterial materna e que pode trazer complicações para
mãe e bebê (leia mais em: https://agencia.fapesp.br/36563/).
Uma das orientadoras da pesquisa,
juntamente com o diretor superintendente do Hospital do Rim e integrante do
Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo, José Medina Pestana,
a professora Dulce Elena Casarini destaca
a preocupação com um possível crescimento de casos graves de lesão nos rins
decorrentes da COVID-19.
“Se há um aumento agora pela procura
de diálise, no futuro poderemos ter demanda maior por transplantes”, diz a professora,
em entrevista à Agência FAPESP.
No Brasil, o número de transplantes
de rim se manteve em pouco mais de 5.900 ao ano entre 2017 e 2019,
segundo dados do
Ministério da Saúde. Mas a lista de espera por esse tipo de órgão teve aumento,
passando de 28.351 pacientes para 29.554 no mesmo período.
Pesquisa de grupo internacional publicada no
dia 1º de setembro no Jornal da Sociedade Americana
de Nefrologia, com base em dados dos Estados Unidos, apontou que, em
média, sete pessoas precisaram de diálise ou de transplante de rim a cada 10
mil pacientes de COVID-19 com quadros leves ou moderados. Entre os pacientes
infectados com o coronavírus e não hospitalizados, o risco de sofrer lesão
renal aguda em um período de seis meses foi 23% maior se comparado aos não
infectados.
Múltiplas funções
Supervisora
do Laboratório de Rim e Hormônios da Unifesp, Lilian Caroline Gonçalves de
Oliveira, coautora do artigo, afirma que um dos pontos analisados foi o papel
de ACE2 na patogênese da COVID-19.
“A
importância de ACE2 como receptor para internalização do SARS-CoV-2 na célula
já estava comprovada. Com essa interação entre vírus e receptor, a enzima deixa
de desempenhar a função protetora, o que acaba tornando o sintoma de COVID-19
cada vez mais preocupante”, afirma Oliveira.
No estudo,
o grupo destaca que o mecanismo exato de complicação renal em pacientes com o
novo coronavírus ainda é desconhecido e pode ser multifatorial. Porém, aponta
que a infecção é capaz de provocar lesão indireta nos rins devido à inflamação
sistêmica, à insuficiência de oxigênio transportado para os tecidos do corpo
(hipoxemia) e ao desequilíbrio do sistema renina-angiotensina.
Esse
sistema compreende uma série de reações que ajudam a regular a pressão arterial.
Quando a pressão cai, por exemplo, os rins liberam a enzima renina na corrente
sanguínea. Ela produz angiotensina 1, que é convertida pela ACE em angiotensina
2, um hormônio ativo que atua nas paredes musculares das pequenas artérias
levando à vasoconstrição. Em condições normais, há um balanço harmônico entre
ACE e ACE2 para manter a homeostase do organismo.
Além
disso, o novo coronavírus pode infectar células renais causando lesão direta e
comprometimento do sistema renina-angiotensina intrarrenal, contribuindo assim
para doenças agudas e de longo prazo. “Fizemos um compilado para embasar
futuros estudos e mostrar a importância do impacto da COVID-19 em outros
órgãos, além do sistema respiratório”, diz Cruz.
O artigo Angiotensin-Converting Enzyme 2 in the Pathogenesis of Renal
Abnormalities Observed in COVID-19 Patients pode ser lido
em www.frontiersin.org/articles/10.3389/fphys.2021.700220/full#h4.
Luciana
Constantino
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/cientistas-investigam-como-a-infeccao-pelo-sars-cov-2-pode-levar-a-problemas-renais/36796/