Especialista do CEJAM destaca riscos e a importância de políticas públicas para o acesso ao tratamento
O avanço das plataformas digitais de apostas e a ampliação do
acesso a jogos de azar têm reacendido discussões sobre os impactos da ludopatia
no Brasil. Classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um
transtorno mental, o vício em jogos representa um fenômeno crescente no país,
com efeitos relevantes sobre a saúde pública, a estabilidade financeira das famílias
e o bem-estar emocional da população.
Estimativas recentes, divulgadas pelo Senado Federal, apontam
que mais de 2 milhões de brasileiros convivem
com o transtorno do jogo patológico, também conhecido como ludopatia. Em 2024,
cerca de 15% da população realizou algum tipo de aposta, com maior prevalência
entre jovens de 16 a 24 anos. O comportamento, que em muitos casos se inicia
como atividade recreativa, pode evoluir para um padrão persistente
comprometendo diferentes áreas da vida pessoal, social e profissional.
“O jogo passa a configurar um transtorno mental quando deixa de
ser uma atividade controlada e recreativa e passa a provocar prejuízos
concretos, como endividamento, sofrimento psíquico e comprometimento de
relações interpessoais”, explica Dr. Rodrigo Lancelote, psiquiatra e diretor do Centro de
Atenção Integrada à Saúde Mental de Franco da Rocha (CAISM) e do Hospital
Estadual de Franco da Rocha, unidades gerenciadas pelo CEJAM (Centro de Estudos
e Pesquisas “Dr. João Amorim”) em parceria com a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES -SP).
De acordo com o especialista, os jogos de azar envolvem risco
financeiro baseado no acaso e, culturalmente, são percebidos por muitos como
forma legítima de entretenimento. No entanto, em alguns casos, o envolvimento
excessivo, em termos de tempo e dinheiro, pode levar ao desenvolvimento de um
transtorno psiquiátrico.
“Chamamos de comportamento de jogo patológico. E ele costuma
evoluir em três fases distintas. Na fase inicial, os ganhos são interpretados
como indicativos de habilidade, o que leva à repetição do comportamento.
Depois, o jogador passa a perder com frequência e tende a reinvestir recursos
na tentativa de reverter o prejuízo. Já no estágio final, observa-se aumento do
isolamento, dificuldades familiares, esgotamento emocional e comprometimento
funcional relevante”, enfatiza.
Os impactos se estendem à vida financeira, à produtividade no
trabalho, ao convívio familiar e à saúde mental. “É comum que o jogo se torne
um elemento organizador da rotina do indivíduo, substituindo relações,
ocupações e projetos pessoais. As consequências incluem a inadimplência, perda do emprego,
conflitos conjugais e exposição a riscos legais”, complementa.
Estudos apontam que a ludopatia apresenta elevada taxa de
comorbidade com outras condições psiquiátricas, como transtornos do humor, bipolaridade, transtorno de ansiedade generalizada,
estresse pós-traumático e dependência de substâncias. Informações da Pesquisa
Nacional sobre Álcool e Condições Relacionadas indicam que indivíduos com transtorno do jogo patológico têm maior vulnerabilidade ao
desenvolvimento desses quadros, o que aumenta a complexidade do tratamento.
“Não é raro que o jogo seja utilizado como uma tentativa de
regulação emocional ou fuga de situações adversas. Isso torna o comportamento
particularmente resistente à mudança, especialmente quando não há um olhar
clínico ampliado para as condições associadas”, analisa Lancelote.
Embora historicamente mais frequente entre homens, o transtorno
tem atingido de forma crescente o público feminino. Estima-se que cerca de
um terço dos casos atualmente envolva mulheres, que, conforme o médico, tendem a
apresentar maior prevalência de sintomas depressivos e uso do jogo como forma
de lidar com sofrimento emocional.
Além disso, o aumento da oferta digital também tem exposto de
forma precoce adolescentes e jovens adultos a comportamentos de risco. “A
acessibilidade contínua aos jogos, aliada a elementos como recompensa imediata,
gamificação e anonimato, torna o ambiente propício ao desenvolvimento de
padrões compulsivos, especialmente em indivíduos com maior vulnerabilidade
psíquica ou social”, pontua o psiquiatra.
O tratamento da ludopatia requer uma abordagem multidisciplinar e
individualizada. Entre as estratégias utilizadas, destacam-se terapias
psicodinâmicas, comportamentais, grupos de apoio como Jogadores Anônimos e,
quando necessário, intervenções farmacológicas para comorbidades psiquiátricas.
Segundo o especialista, o processo terapêutico deve considerar a
trajetória de vida do paciente, seu contexto social, histórico familiar e
hábitos de consumo. “Além da escuta clínica, é importante oferecer suporte em
áreas práticas, como reorganização financeira e reconstrução da rede de apoio.
Técnicas de prevenção de recaída, treinamento de habilidades sociais e
planejamento de atividades complementares são recursos frequentemente
utilizados”, destaca.
O atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é realizado por
meio da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com apoio dos Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), que funcionam no
sistema portas abertas, ou seja, não é preciso realizar agendamento. No entanto, o desconhecimento sobre o transtorno e a
ausência de capacitação específica ainda são entraves para a identificação
precoce e o encaminhamento adequado dos casos. “É fundamental que os
profissionais estejam preparados para reconhecer o quadro e atuar de forma
integrada com a rede”, afirma.
Outro
ponto que merece atenção é a necessidade de políticas
públicas voltadas à prevenção da ludopatia. Embora o Ministério da Saúde
participe das discussões por meio de grupos interministeriais, ainda há lacunas
significativas na articulação entre os setores envolvidos e na implementação de
estratégias educativas.
“Qualquer avanço na regulamentação precisa considerar os riscos à saúde pública. A existência de um marco legal não elimina a necessidade de campanhas de informação, capacitação de profissionais e fortalecimento da rede de cuidado. O Brasil ainda carece de um plano nacional específico para o enfrentamento da ludopatia”, conclui o psiquiatra.
CEJAM - Centro de Estudos e Pesquisas “Dr. João Amorim”
@cejamoficial

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