Uma das lembranças que marcaram minha infância são os comícios eleitorais. Havia o palanque, muita gente ouvindo os oradores, eu sempre pendurado na cancela do tablado que acolhia candidatos e outras pessoas que deviam ter a devida importância para estarem lá. Eram um espetáculo, e eu me sentia situado no melhor camarote: na beira do poder; a gente aos olhos.
As palavras
me encantavam. Elas iam se desdobrando, recebendo tons, tempos, intensidade,
volume. Gestos fortes as acompanhavam; as faces dos falantes se contraíam,
sorriam, expressavam de valentia a escárnio. Diziam pelo silêncio breve, surpreendiam
expectativas, causavam ira, faziam rir. Mágicos que não usavam “varinhas”,
usavam palavras.
Povo e
palanque, nos momentos efusivos, ficavam uma coisa só. Tudo vibrava em
uníssono. O meu gosto era antecipar esses instantes. Acompanhava o crescer da fala,
a oratória que se soltava, e percebia como que um contágio. Da multidão vinham
urros, aplausos, a vibração dos corpos que gozavam os arroubos retóricos,
tocados no seu âmago, até explodirem.
Pura arte.
Desde sempre eu acreditei que as palavras podem tudo. Penso essas coisas à face
de uma discussão que entretém alguns intelectuais. Existia um dito de gosto
popular: “Há sentimentos que as palavras não conseguem expressar.” Isso chegou
a uma afirmação mais sofisticada: “No nosso pensar, somos prisioneiros dos
limites do exprimível pela língua.”
De tal
maneira essa ideia se foi assentando, que já não falta quem diga que, na
ausência de palavras, as artes representam as dimensões do humano. Isso me
espanta: excluem-se as palavras – ou a articulação delas – das artes elevadas?
Francamente, não creio que qualquer outra forma de expressão alcance todos os
sentidos que o verbo pode proporcionar.
Donde viria
o juízo de que a imaginação é cativa da linguagem? Suponho que da moda de dizer
que a arte é expressão do inconsciente. Assim, um texto, porquanto filtrado
pelo superego, não seria expressão artística? Não creio: primeiro, qualquer
dizer artístico carrega cultura; segundo, cultura é sempre superego; terceiro,
o inconsciente não se cala diante da cultura.
Arte é a
expressão estética humana que diz ao humano sobre os aspectos humanos
subjacentes: glórias e covardias; desembaraços e vergonhas; desejos e
interditos; coragens e medos. A arte é uma experiência estética única entre a
criação do artista e o espectador, mas o espectador e o artista estarão sempre
grávidos das coisas do mundo.
Arte é
linguagem. A palavra é a melhor linguagem. A pintura comove, a música enleva,
há esculturas que vivem. Bernardo Soares: “Na prosa se engloba toda a arte - em
parte porque na palavra se contém todo o mundo, em parte porque na palavra
livre se contém toda a possibilidade de o dizer e pensar. Na prosa damos tudo
por transposição [...]” (MultiPessoa, Poética 21).
As coisas
da vida são áridas. “A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a
vida não basta”, diz Fernando Pessoa em Erostratus, onde disserta sobre
imortalidade das obras literárias. Os comícios se me ficaram imortais: as
palavras e tudo o mais. Quando havia um comício, eu nem pensava na vida, as
palavras, as formas de dizê-la, elas me bastavam.
Palavras
fazem devanear, porém, limitam aos seus limites: só pensamos dentro do alcance
das palavras que sabemos. Não sei tantas, sei o bastante: conto um gesto meigo,
digo saudade, narro paixão. As palavras nunca me faltaram. Talvez alguém sinta
falta de palavras e não tenha palavras para lamentar. Aí, a pessoa não sabe que
não sabe, talvez.
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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