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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Marcados pela falta. O sol não está para todos


Passeios ao ar livre, parques, praias e piscinas repletas de famílias que aproveitam o calor de mais de 30ºC do verão, que marca principalmente os meses de dezembro a janeiro. Entretanto, para uma parcela da população, essa imagem, digna dos filmes que compõe a programação da tarde dos canais de televisão, não é uma realidade. 

As férias escolares que deveriam ser, teoricamente, um período de descanso, lazer e de boas memórias em família se tornam para mais de 16,6 milhões de pessoas (8% da população brasileira), que vivem nas periferias e favelas, segundo a prévia do Censo de 2022 (IBGE), um período de escassez e insegurança. Mas, antes de falarmos as razões para esse cenário, é preciso ir para além do retrato e trazer a realidade vívida dessa população. 

Segundo dados do IBGE, cerca de 63% dos lares nas periferias do país são chefiados por mulheres pretas e pardas. Além de serem a maioria nesses territórios, elas enfrentam maior desvantagem no mercado de trabalho, com uma taxa de desemprego de mais de 13%. Assim como mais de 80% dos brasileiros, essas famílias compostas, em geral, por mães solo, sem rede de apoio e com baixa ou nenhuma renda, tem o ensino de seus filhos apoiados na rede pública. 

É nesse contexto, que a escola não se restringe aos cadernos da sala de aula e ao desenvolvimento pedagógico da criança e do adolescente, mas se torna um espaço de garantia e acesso a um direito básico, e à alimentação de qualidade. 

A merenda escolar, oferecida para todos os alunos da rede pública de ensino (municipais e estaduais) a partir do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e ampliado com a Lei 11.497, representa na maioria dos casos, a única e principal possibilidade de alimentação dentro da realidade das famílias periféricas, sendo uma maneira de aliviar o peso da escassez financeira. 

Por essa razão, as férias escolares significam mais fome durante, pelo menos, 40 dias. Famílias que nesse período se veem obrigadas a ir para casa de parentes com o pretexto de “um lugar diferente para as crianças” e mascaram a insegurança alimentar em ter somente, arroz, feijão e farinha no prato. E muitas vezes, nem isso. 

Diante desse cenário, as mães que não possuem qualquer rede de apoio, para de alguma maneira suprir essa demanda alimentar que aumenta com as crianças em casa, saem em busca de oportunidades, trabalhos pontuais e/ou sazonais para garantirem às suas famílias, ao menos o mínimo para sobreviverem. Como consequência disso, é delegado ao filho mais velho – que geralmente possui poucos anos de diferença do irmão ou irmã mais novos – os cuidados com a casa e com a criança menor, o que sujeita à família à diversos acidentes domésticos, que poderiam ter sido evitados caso houvesse uma rede de apoio para além da família. 

Apesar de programas e projetos públicos que poderiam auxiliar essas famílias nesse período, como o Recreio nas Férias, dos CEUs (Centro Educacional Unificado) em São Paulo, que promove atividades recreativas, de lazer e cultura para crianças e adolescente durante o dia de forma gratuita, é preciso considerar que as periferias possuem extensões facilmente equiparáveis às cidades inteiras. Para citar um exemplo, somente a maior favela de São Paulo, Heliópolis, possui mais de 1 milhão de quilômetros quadrados. O fato é que apenas um projeto em cada periferia não é capaz de suprir as necessidades e principalmente a dimensão da sua população. 

Por isso, enquanto parte da população frequenta parques e atividades culturais, as crianças e adolescentes periféricos ainda são marcados pela falta. São territórios inteiros considerados verdadeiros “desertos ambientais”, por não terem áreas verdes, sem espaços destinados ao lazer da comunidade, além de sofrerem com problemas crônicos de acesso a moradia, abastecimento de água e redes de esgoto. 

O calor e chuva forte, característicos nessa época do ano, fazem com que os “barracos” com poucos metros quadrados se transformem em verdadeiros fornos durante o dia, e ao final da tarde famílias inteiras se tornam vítimas dos danos físicos, psicológicos e materiais ocasionados pelos alagamentos. 

Sem mencionar a falta de abastecimento contínuo de água em algumas regiões, que obriga essas famílias a armazenarem água em garrafas PET para beber. É comum que periferias inteiras sejam “esquecidas” sem água e luz por semanas. 

Com uma realidade tão difícil para boa parte dos moradores das periferias do país, é muito difícil falar em lazer e diversão para as crianças, e em especial para os adolescentes. 

Em uma fase tão crucial para o desenvolvimento físico, intelectual e psicológico, o adolescente periférico se depara de maneira ainda mais forte com sua realidade, e se vê muitas vezes sem perspectiva alguma. A ausência de espaços culturais e de lazer, faz com que o jovem tenha na rua sua diversão e única possibilidade de conexão com outras pessoas além da família, e consequentemente, cada vez mais expostos às vulnerabilidades como a violência e as drogas. 

É necessário que antes mesmo que programações de férias e recreações sejam desenvolvidas, as periferias sejam vistas e seus problemas estruturais, não sejam ignorados. 

Para que isso ocorra, é primordial que, de forma, estados e prefeituras possam garantir a alimentação dos mais de 42,6 milhões de alunos matriculados na rede pública de ensino do país. Na prática, o que acontece em alguns estados e municípios é fornecer almoço para os alunos da rede, mas é essencial considerar as demais refeições que essas crianças e adolescentes realizariam na escola. 

Além disso, é importante considerar por meio da iniciativa pública e privada a construção de áreas de lazer, parques e casas de cultura, levando em conta a extensão e particularidades do território periférico, para que as famílias da periferia estejam próximas e consigam de fato acessar esses espaços. 

É fundamental elaborar uma programação de férias que conecte principalmente a juventude periférica com as suas vivências, gostos e possibilidades de desenvolvimento pessoal e profissional. 

Um aliado potente que pode contribuir na construção e aplicação dessas políticas também são as organizações do Terceiro Setor. Presente nas periferias do país, as ONGs têm a expertise e oferecem atividades que promovem a cidadania e o acesso à cultura durante todo ano, não somente para crianças e jovens, mas também para o adulto, pensando por exemplo, em sua recolocação no mercado de trabalho. 

A verdade é que o período de férias, não pode ser encarado apenas como um recesso, descanso e água fresca. Para boa parte da população periférica, ele é sinônimo, infelizmente, de inúmeras preocupações. 

É urgente que líderes - sejam de governos ou empresas - assumam o compromisso com políticas públicas e de incentivo que viabilizem a garantia de direitos e o acesso a lazer e cultura, pensando em projetos que incluam sua subjetividade e pluralidade. 

Mais que pensar em como famílias, principalmente crianças e jovens, passam por esses mais de 40 dias, devemos olhar para o futuro. O que que queremos construir para as crianças e jovens que crescem nas periferias do nosso país? Não há resposta simples para perguntas complexas, mas elas precisam ser feitas e mais que isso, trabalhadas para que em algum momento de fato possamos garantir que o sol que nasce, seja para todos.

 

Rosane Luciane Chene - Empreendedora social, co-fundadora e CEO da ONG Projeto Amigos da Comunidade (PAC). Com 28 anos de experiência na área da Tecnologia, passou por grandes empresas como a TOTVS, onde atuou por 19 anos, ingressando como desenvolvedora de software até ocupar a posição de Gerente Executiva de Desenvolvimento e Sustentação na empresa. Rosane é graduada em Tecnologia em Recursos Humanos pela Universidade Senac, pós-graduada em Gestão Pública pela PUCC-RS.
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