O eleitor brasileiro talvez nem saiba, mas nas eleições de outubro poderá eleger um candidato com vida pregressa incompatível com a moralidade que se exige de um homem público. Isso porque a lei brasileira permite a candidatura de políticos que respondem a processo na justiça. E não são poucos nessa situação. Um levantamento realizado pelo Congresso em Foco mostrou que, em 2020, dos 513 deputados federais, pelo menos 106 eram alvo de investigação judicial. A pesquisa se baseou em inquérito e ações penais e eleitorais em tramitação, na época, no Supremo Tribunal Federal e nos tribunais eleitorais e de Justiça estaduais.
Não é exagero afirmar que muitos dos políticos
respondendo a processo ou sob investigação se empenham em conquistar um novo
mandato justamente para manter ou garantir o foro privilegiado, apostando
inclusive na prescrição para se manter impunes.
Fazem isso abrigados pela legislação vigente,
aproveitando-se de uma excrecência que o Brasil precisa abolir com urgência se
deseja alcançar outro nível de civilidade democrática. Pode-se admitir como
tolerável que o homem público, réu na Justiça, possa continuar no exercício do
cargo até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória. Entretanto,
não é possível dizer que isso é desejável, face aos valores éticos e morais
universalmente consagrados, especialmente porque estamos falando de pessoas que
detêm a chave do cofre do dinheiro público. Mais difícil ainda é aceitar que a
esses políticos seja dada a oportunidade de buscar um novo mandato.
A história política brasileira tem exemplos de
sobra de que a pena de cassação temporária dos direitos políticos, prevista
para casos de improbidade administrativa, não se mostra suficiente para a
moralização do sistema. Novas candidaturas de políticos condenados em primeira
instância são eticamente lamentáveis e, portanto, absolutamente condenáveis.
Soam como verdadeiro deboche à Justiça, ao cidadão, ao voto e à democracia.
Essa esdrúxula situação reclama alterações
legislativas que o Brasil ainda não teve coragem de realizar. A principal delas
seria impedir o registro da candidatura daqueles que são réus em processos
judiciais em razão de atos de improbidade administrativa, peculato, corrupção
passiva ou ativa e participação em organização criminosa, ainda que não se
tenha sentença definitiva.
Tal restrição – obviamente baseada em lei – daria
maior segurança jurídica ao sistema eleitoral e evitaria prejuízos como a
possibilidade de o eleito perder o cargo no meio do mandato, em razão da
questão judicial em andamento, então finalmente julgada, provocando a posse do
vice ou suplente, em conturbado processo.
Não há dúvidas quanto à necessidade de medida desse
gênero. Como já argumentou em voto no Supremo Tribunal Federal o ex-ministro
Carlos Ayres Britto, há que se fazer a distinção entre direitos políticos e
direitos individuais. Destacou com propriedade o ex-ministro que direitos
políticos estão vinculados a valores e não a pessoas. E a nossa Constituição
protege os princípios (valores) da probidade administrativa, da moralidade e da
impessoalidade, imprescindíveis para o exercício do mandato. A proibição de
candidatura de réus, portanto, não ofenderia a presunção de inocência não
podendo esta ser aplicada na matéria eleitoral, bem como o trânsito em julgado
não deve ser exigência para rejeição da candidatura.
Da mesma forma, não é desarrazoado supor-se que, se
não houvesse o foro privilegiado no Brasil, muitos políticos-réus estariam
condenados, com penas fixadas, e presos. Uma realidade absolutamente distinta
da atual, propiciada pelo instituto do foro privilegiado que no Brasil protege
cerca de 55.000 ocupantes de cargos públicos, dimensão sem paridade em todo o mundo.
Temos, então, uma verdadeira fábrica de impunidade.
O mais razoável seria reduzir drasticamente esse
privilégio, limitando-o, talvez, apenas aos chefes de Poder e sem alcançar
eventual prática de crimes comuns. Em sua forma atual, o foro privilegiado é um
escudo de impunidade garantida pelo mandato, em inegável distorção do sistema
democrático. Um benefício pessoal às custas do voto popular perseguido por quem
afronta a lei e aposta na morosidade do sistema judicial brasileiro, buscando a
prescrição para escapar da pena de prisão e ainda brandir o resultado como
atestado de idoneidade.
A manutenção do sistema atual é não apenas um
péssimo exemplo às futuras gerações; é também um desestímulo à formação de
novas lideranças políticas, de cidadãos bem intencionados e sem os velhos
vícios da atividade político-partidária na qual os fins justificam os meios.
Em nome da transparência, outro princípio garantido
na Constituição, seria salutar a fixação da exigência para que os candidatos a
cargos públicos apresentassem ao público documentos oficiais detalhando ações
judiciais em que são réus. Da mesma forma, contribuiria muito se os próprios
tribunais disponibilizassem informações sobre as ações em curso envolvendo
candidatos, com acesso ao público e à imprensa, sem qualquer espécie de sigilo,
durante as campanhas eleitorais, principalmente.
Como o cidadão contribui para engordar os recursos
do Fundo Eleitoral, do Fundo Partidário e da Propaganda Eleitoral de Rádio e
Televisão – gratuita apenas no nome -, é seu direito ter acesso à completa
informação sobre todos os que se lançam candidatos, a fim de que possa decidir
seu voto de maneira segura e de acordo com suas convicções.
A lei precisa, sempre, garantir os direitos dos
cidadãos. A democracia não pode, jamais, ter medo da verdade.
Samuel Hanan - engenheiro com especialização nas
áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi
vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor do livro “Brasil, um país à
deriva”.
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