A ditadura da beleza e como ela estraga a alimentação
das pessoas
Estamos no verão e adivinha: vem Carnaval aí! Sol,
praia, calor, corpos esculturais e... epa!
Desde as épocas mais remotas sempre houve um
determinado tipo físico em que as pessoas se inspirassem por ser considerado
belo. Até o início do século XX, a beleza feminina era tida com um dom divino,
uma dádiva que só podia ser imitada por meio de recursos que deixassem as
mulheres temporariamente similares com o considerado ideal. Alguns destes
recursos eram apetrechos como o sutiã de bojo, as perucas, a maquiagem e o
espartilho.
Com o desenvolvimento da medicina, alguns dos
atributos “não-belos” foram aos poucos sendo classificados como doenças - por
exemplo, a obesidade e a desnutrição – e a consequência é que toda a doença
está passível de ter uma cura. Então, tratamentos para várias questões, antes
consideradas de estética, passam agora a também fazer parte do escopo da saúde.
No meio dessa miscelânea estão o peso e a forma física. Desde sempre estiveram
compondo as referências de beleza e feiura na história, mas sem dúvida nunca
tão fortes como hoje.
Atualmente, basta uma pesquisa simples sobre “mulher
bonita” na internet que você perceberá um padrão: jovens, loiras, magras e
definidas, com bumbuns avantajados e seios proeminentes.
Em nossa era temos algo inédito: os editores de
imagem, onde transformam pessoas já dentro do padrão de beleza em pessoas
surrealmente aperfeiçoadas, construindo uma beleza de questionável
possibilidade no plano real. Com a ajuda da superexposição dessas imagens,
nossa referência vai ficando cada vez mais irreal.
Só para se ter uma ideia, no último Miss Universo, a
ganhadora foi a francesa Iris Mittenaere, com um IMC de 18,3 kg/m², o que
significa desnutrição grau I. No caso da canadense Siera Bearchell, com um IMC
de 19,9 kg/m², a reação de parte do público foi cruel: a moça foi achincalhada
e chamada de gorda por muitos internautas, mesmo o seu IMC classificando seu
peso como normal. Esse recente episódio nos mostra como a nossa referência de
corpo bonito está viciada: o normal virou gordo e o desnutrido virou normal.
Sem dúvidas, o peso corporal e sua composição tem uma
relação importante com a saúde, porém não nos moldes que o senso comum diz. Não
se trata de negar que o peso corporal tem uma relação importante com a saúde,
entretanto o que temos hoje é um grande terrorismo. E com isso, no terreno onde
está o peso estão completamente misturadas também a saúde e a estética. Uma
mistura tão profunda que é muito difícil percebermos em uma notícia, por
exemplo, quando estamos falando de peso e quando estamos falando de estética.
No meio de tudo isso temos a comida. Essencial para a
sobrevivência, mas muito temida. E, vale lembrar, atualmente vivemos numa era
com muita disponibilidade de comida. Esta é vista como um manipulador do peso e
forma do corpo, que, neste espectro, se materializa na forma das dietas da
moda, dos alimentos/nutrientes mágicos e dos alimentos/nutrientes perigosos.
Embebido no universo em que “cuidar” do peso passou de normal para uma norma de
comportamento, o comer passou a gerar muita culpa, pois com frequência este
“comer certo” não vem de acordo com o comer cultural, habitual, afetivo,
simbólico, social e prazeroso.
Nesse ponto criamos dois polos: um deles, onde a
pessoa está buscando alcançar o padrão (mesmo que sem sucesso) por meio da
alimentação, medicamentos, shakes, etc.; e no outro polo onde a pessoa nega
esse caminho e decide apenas comer. Esse último caso seria uma opção muito
saudável se a nossa escolha alimentar não estivesse tão atravessada pela
indústria alimentícia, pela propaganda de alimentos, pela onipresença dos
ultraprocessados, pelos modos de vida moderno priorizando os meios de produção
em detrimento do cuidado do próprio comer, pelo distanciamento do cozinhar,
pela não percepção adequada da fome e da saciedade, entre tantos outros fatores.
Com isso, mergulhados nesse mundo onde é necessário
ser belo, e não qualquer belo, mas o padrão (irreal), temos um prato cheio para
indústria da beleza, que se concretiza num verdadeiro mercado infinito. Muita
gente sofre nesse fogo cruzado, na relação com o seu próprio corpo e também no
relacionamento com a alimentação. A comida hoje foi reduzida a nutrientes, o
que faz bem ou faz mal, o que engorda ou não engorda, o que é saudável ou não
saudável – relegando um processo natural a uma dicotomia triste e traumática. E
nesse looping eterno, o comer perde espaço para o emagrecer.
É possível ter paz com o seu corpo e com a comida e
isso deveria ser muito intuitivo, mas não é. E essa paz não exclui o “estar
saudável”. Pelo contrário, inclui. É preciso estar atento e criticar esse
modelo de beleza único e de alimentação puramente focada em nutrientes e
dicotomias. Assim podemos ressignificar uma cultura, pois a postura de um novo
comportamento é o motor da mudança. Essa não é uma tarefa fácil, mas também não
é impossível.
Cezar Vicente Jr. - Nutricionista, supervisor no Ambulatório de Anorexia Nervosa do
Programa de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da USP (Ambulim - HCFMUSP). Mestrando em Nutrição e Saúde Pública pela
USP.
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