Por mais que se encontre perto do
belo absoluto, segundo a maioria ou a unanimidade dos críticos, é ditatorial
impor aos nossos olhos o mais esplendoroso grafite do mundo. Ele deve
estar acessível à população, em estabelecimentos de entrada franca e divulgados
enquanto incentivo à sua visitação. Todavia, não ocupar o universo da paisagem
urbana.
A Monalisa está no Louvre e ninguém
estaria obrigado a ver réplicas do olhar de Leonardo em todos os pontos
públicos de Paris ou de sua Florença. A liberdade, em princípio a
liberdade negativa, consiste em ninguém ser obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei (inciso II da Constituição Federal).
É liberdade de primeira geração, vinda do Iluminismo e das ideias
revolucionárias. Ver obrigatoriamente é fazer sem querer e sem comando
legal determinante.
Ainda que a pauliceia fique mais
vistosa, tal liberdade primária estará desgastada. É possível que 80% dos
observadores fiquem sensibilizados com a urbe, e os demais prefiram outro tipo
de expressão e tenham reação psíquica negativa. Direito das minorias.
E como ter-se certeza de que os espaços públicos estejam ocupados pelos
melhores? E a isonomia entre os artistas?
A utilização da ferramenta do
estado de modo coercitivo - e não será outro - para ter-se os grafites
expostos, necessariamente seletiva, faz lembrar os regimes totalitários que
viam a arte como propaganda do regime. Ainda que, neste momento, não esteja
presente esse desiderato político, o mundo gira e a lusitana roda, como dizia
velha propaganda. Os senhores da aprovação das imagens públicas,
inevitavelmente, serão os senhores de nossa sensibilidade.
Os gastos públicos para se fazer
um rodízio supostamente democrático, além de não restaurar a liberdade, serão
dinheiro do povo a escapar pelo ladrão. Essas potencialidades financeiras
poderiam ter aplicação na criação de museus específicos, definidos segundo as
tendências e correntes artísticas, como se dá em Paris. Não nos consta que os
muros do primeiro mundo estejam pichados, com engenho e arte ou com
rabiscos que nos causam engulhos - as pichações ordinárias - que cobrem grande
parte da capital paulista.
Não vemos frequências populares
incentivadas ao Museu da Imagem e do Som, ao Museu de Arte Moderna de São
Paulo e à Casa das Rosas, na avenida Paulista, somente para citar alguns
exemplos. A democracia artística deve reinar nesses recantos e impressionar um
número muito maior de pessoas, inclusive pela futurista e admirável arte
fotográfica, álbuns de fotos mágicas, tal como a de Balent Alovist, de
Budapeste, Hungria; sua manipulação fotográfica da arquitetura nos parece
conduzir a um outro universo, em minha peculiar opinião. Enfim, devemos
proporcionar artes de todos os tipos à nossa população, não apenas o grafite,
que, por mais impressionante que seja, peca pela falta de mobilidade no
atendimento de milhões de habitantes de nossa polis. O grafite não é apenas um
acréscimo. Permitindo o espraiamento de obras visuais pela cidade, os
governos creem já ter cumprido sua missão cultural.
Melhor para o soerguimento
de novos prédios, formados por áreas comuns deslumbrantes e cubículos residenciais
ou profissionais, para o dinheiro mal empregado, para a corrupção etc. A USP
recebeu um número expressivo de imóveis em inventários sem herdeiros (herança
jacente). Provavelmente, boa parte está deteriorada. E as casas culturais
continuarão às moscas, ressalvadas as eventuais visitas escolares que são a
salvação da lavoura.
O mundo humano abriga um
choque dialético de valores. Não raro, temos de optar por um em detrimento de
outro. Na escala axiológica, o primeiro valor a ser defendido é a
vida. O segundo é a liberdade, porquanto não há vida integralizada
unitariamente em corpo, alma e espírito, sem liberdade. As artes em geral fazem
a essência de uma cultura, o fulcro mesmo de sua felicidade, depois do
atendimento das necessidades fundamentais do povo, e merecem proteção e forte
incentivo dos governos, que propiciem não só a uns poucos viajarem por seu
mundo mágico, não raro fulcrado nos costumes primevos e lendas de um grupo
social que o credenciam como história constitutiva do que se
denomina nação. Em templos (simples, a cultura merece o nome) e, não, como uma
observação forçosa e compulsória a todos quantos tenham de passar por
determinadas artérias urbanas.
Assim sopesados, entre o homem
criativo e o homem livre, prefiro este, "compatível com o estado de
liberdade em que o artista cria" (Isaiah Berlin, "Ideias Políticas na
Era Romântica").
Amadeu Roberto Garrido de Paula - poeta e autor do livro "Universo Invisível". Advogado e
membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.
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